sábado, 15 de agosto de 2015

As Fogueiras da Inquisição. Ana Cristina Silva. «… desintegram e perdem solidez? As paredes não deixaram de ser de pedra, mas vão-se parecendo com uma muralha de fumo transparente. Precisas de exercitar o dom da visão até uma profundidade ainda maior de nitidez»

Cortesia de wikipedia e jdact

Sara
«(…) O silêncio desta masmorra encontra-se repleto de frémitos, de barulhos de ferros e de gritos longínquos. Transida de medo, passas as tuas noites com os ouvidos alerta, sempre atenta aos passos dos guardas, pois a qualquer hora, nas suas incursões nocturnas, poderão vir buscar-te. Sabes que as culpas do teu sangue são mais do que suficientes para que sejas condenada. Renunciaste há muito a confiar de viva voz os sentimentos da tua fé, uma privação que te obrigou a mergulhar fundo nos contornos da falsidade. Passaste a tua vida ao lado de um distinto fidalgo, cumpriste todos os ritos enganadores dos cristãos, se bem que em segredo repudiasses as mentiras dos teus lábios. Do teu libelo acusatório devem constar os delitos heréticos do costume e, por causa deles, talvez vejas promulgada uma sentença que apenas te permitirá sair desta cela de mãos atadas. Avançando em auto-de-fé, por entre a chacota da multidão, terás como destino unir o teu corpo ao implacável ardor das chamas. Mas nem isso já te atormenta... O teu maior receio é o de não teres força para morrer pela honra e, antes de darem os teus ossos aos cães, confessares com mentira as verdades que eles pretendem ouvir. Naqueles interrogatórios reina uma tenebrosa irrealidade, na qual as perguntas nunca encaixam nas respostas nem a verdade se distingue da falsidade. Não existindo maneira de te precaveres contra o teu corpo, sabendo-te refém da tua carne, através da qual talvez venhas a sofrer os horrores da tortura, não podes sentir-te segura de que, em presença dos carrascos, te consigas manter fiel ao Eterno. Neste mundo de sombras, só a ferocidade daqueles que executam as leis é pura.
Beatriz Vaz, a tua companheira da cela ao lado, denunciou todos os nomes de que se lembrou, antes mesmo de lhe aplicarem qualquer suplício. Mesmo assim, não adivinhou aqueles que a teriam visto fazer o jejum do Kippur e o jejum grande do mês de Setembro. Muito ela te aconselhou a seguires os seus passos na confissão. Devias, dizia-te ela, baixar os braços, avisou-te para te persignares perante o inevitável, instou-te à resignação e a percorreres as tuas terras e as vizinhas e, se tal não bastasse, todo o reino, para denunciares. Só deste modo, advertiu-te, parecendo assaz avisada, te poderias salvar. Beatriz deitou a perder todos os parentes que amava e o seu fero desejo de se manter viva extinguiu-se após tamanha perdição. Com o espírito ensandecido pela culpa morreu na cela ao lado, gritando por um perdão que não lhe pudeste verdadeiramente assegurar. Por tudo isso, terás de arranjar maneira de escapar. Talvez voltando atrás... Serás capaz de sentir de novo, uma a uma, as sensações dos dias anteriores àquele em que o alcaide fechou a porta desta cela? Tens quarenta anos, entraste aqui ainda sem os teres feito. Escuta o teu coração, revive as suas aventuras. A tua memória não está cativa e ainda consegues sorrir face ao reflexo das lembranças. Apodera-se de ti uma alegria quase febril por sentires que irradiam de ti todas as gargalhadas, todos os abraços, todos os beijos, todas as lágrimas de então. Afinal o que é o tempo? O tempo é apenas o frágil elo que une os acontecimentos. Está na tua mão teceres um casulo de imagens e entrares lá para dentro. Rodeia-te das paisagens da tua infância, passeia-te pelo braço do teu amado. Esforça-te, Sara! Sobretudo como aumentam as fendas ao escutares a sua voz... Não vês como as, lembra-te da tua avó. Repara paredes se desintegram e perdem solidez? As paredes não deixaram de ser de pedra, mas vão-se parecendo com uma muralha de fumo transparente. Precisas de exercitar o dom da visão até uma profundidade ainda maior de nitidez. Imagina uma pena fantástica que escreve sobre a tua memória todas as histórias que a tua avó te contou. Força-te, Sara, pois só deténs os poderes da memória para te defenderes dos algozes. Sente os acontecimentos e os seus lugares a atravessarem as fronteiras do tempo. O teu pensamento e a eternidade podem ser uma e a mesma coisa. As imagens deslizam e, seguindo-as para onde elas te levam, poderás ir para longe.

A memória da avó de Sara
A minha avó, chamada Ester Baltasar desde o tempo do seu baptismo em pé, a minha avó cujo coração nunca olvidava que o seu nome era Ester Abecanar, atribuíra-se o encargo de me contar a história do nosso povo. Também tomou como sua a incumbência de me doutrinar na fé dos nossos antepassados a partir do momento em que as palavras deram sinal de si na minha mente. Para além disso contou-me todas as peregrinações e desventuras da sua família desde o tempo em que haviam fugido de Sevilha. Como tantos outros judeus, o seu pai escapara para Portugal após a expulsão decretada em 1492 pelos reis mui católicos dona Isabel de Castela e Fernando de Aragão. Ao referir-se à fuga da sua família, os olhos da minha avó deslizavam, como se estivesse a rever algo que ultrapassava as palavras humanas. Aquelas lágrimas não pertenciam só aos seus olhos, pois eram as mesmas que já haviam sido choradas por todo o povo judeu em amarga diáspora». In Ana Cristina Silva, As Fogueiras da Inquisição, Grandes Narrativas, nº 396, Editorial Presença, Lisboa, 2008. ISBN 978-972-233-939-1.

Cortesia de EPresença/JDACT