segunda-feira, 17 de agosto de 2015

A Rosa de Alexandria. Maria Lucília Meleiro. «Afinal de contas, o casamento entre irmãos era um costume faraónico. O poeta Teócrito, esse, sempre a insistir no facto de o ouro abundante não dormir nos cofres de Ptolomeu mas servir para recompensar os poetas…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Ninguém me é estranho, se for bom. A natureza é só uma para todos; a diferença está no carácter». In Menandro (342-C.242 a. C)

A morte da águia
«(…) A celebração das cerimónias fúnebres pela morte da rainha Arsínoe Filadelfa duraria dias, exéquias complicadas à maneira egípcia, com toda a pompa e circunstância devidas a uma princesa real, sobrinha de Alexandre, mulher e irmã de um faraó. Não fora Alexandre, o Grande, ele próprio, recebido e coroado pelo clero de Amon como um verdadeiro faraó divinizado? Dizia-se que o fundador da dinastia dos Lágidas, Ptolomeu Sóter, pai de Filadelfo e de Arsínoe, era filho bastardo de Filipe da Macedónia, pai de Alexandre, uma vez que a avó paterna da rainha agora falecida, também chamada Arsínoe, ao casar com o velho Lagos por insistência de Filipe II, se encontraria já grávida do monarca macedónio. Um parentesco secreto uniria portanto os primeiros Ptolomeus ao sangue glorioso e infausto de Alexandre, ao seu génio, aos seus excessos, ao seu talento a um tempo despótico e idealista de governação.
Arsínoe Filadelfa, terceira rainha da dinastia lágida, vivera os seus últimos dias numa corte esplendorosa. Rodeada de artistas e sábios e de uma miríade de funcionários reais, encarnava ela própria a grande sacerdotisa do sagrado carneiro de Amon. Tinha grande fascínio pelas artes e pelas ciências em geral; era, porém, a paixão política que a consumia, e a ela dedicara, com extraordinária e selvática vitalidade, toda uma vida. Ao tornar-se rainha do Egipto, devido ao matrimónio com seu irmão Ptolomeu, algumas vozes tinham-se erguido discordantes, mormente entre os Helenos e Macedónios, que não viam com bons olhos este casamento entre irmãos. Um poeta cretense, Sótades, atrevera-se a desafiar o rei, criticando-o em tom mordaz e versos obscenos: …metes o pénis onde não deves...!, chamava Sótades de olhar turvo, um sorriso escarninho a rasgar-lhe o rosto. Mas longe iam os tempos de irreverência de filósofos e poetas, quando Diógenes dava respostas impertinentes a Alexandre. Sótades pagou com a cabeça a ousadia.
Afinal de contas, o casamento entre irmãos era um costume faraónico. O poeta Teócrito, esse, sempre a insistir no facto de o ouro abundante não dormir nos cofres de Ptolomeu mas servir para recompensar os poetas, não se poupara a fazer os maiores encómios ao enlace, salientando a propósito que também Hera e o divino Zeus eram irmãos. Durante o seu reinado a rainha sempre se abstivera de gastos inúteis e irreflectidos, tão ao gosto sumptuário do monarca, e o povo estava contente. Foram levadas a cabo obras notáveis, lá estavam o farol de Faros, com a sua estátua e a de Ptolomeu à entrada, o Museion e a Biblioteca de Alexandria para o comprovar, e não foram esquecidos o restauro e a edificação dos templos indígenas.
Arsínoe, que apostava no domínio dos mares como condição essencial para o comércio e as conquistas do Egipto, reorganizou a armada, ampliou a frota, dilatou as fronteiras. Engenheiros trabalhavam arduamente no nomo de Arsinoite, procurando a maximização das colheitas e a irrigação perfeita. Glorificada nos templos como synnaós theos, uma deusa em companhia dos deuses ali presentes, depois da sua morte cunharam-se moedas com a sua efígie e foi honrada por Calícrates com um templo próximo de Alexandria consagrado a Afrodite Zefiritis. Mas não confiava em ninguém. E em quem poderia ela confiar?» In Maria Lucília Meleiro, A Rosa de Alexandria, tradução de João Lourenço, Grandes Narrativas nº 192, Editorial Presença, Lisboa, 2002, ISBN 972-232-961-8.

Cortesia de EPresença/JDACT