terça-feira, 25 de agosto de 2015

A Paixão. Tetralogia Lusitana. Almeida Faria. «… volvidos vinte anos sem saber de mim, nem se interessando, veio cá o ano passado pela feira de Maio e foi fazer uma visita à minha tia, irmã da minha mãe»

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Piedade
«(…) Sempre a manhã desta sexta-feira é diversa das outras na casa; Piedade, a cozinheira, o sabe, por isso despertou cedo, embora se levantasse um pouco tarde, depois daquele tempo todo a memorar; é uma sexta-feira cheia do sol de Março, é sexta-feira dita a santa; Piedade ensombrece, e sofre não por ser sexta-feira, nem por ter sido santa, mas precisamente porque rememora, porque ainda na véspera à noite, de luz apagada e deitadas ambas, falou no seu passado à companheira e choramingou ou chorou mesmo; esta não o saberá dizer; durante a calma confissão da noite comoveu-se bastante, deu estalidos amigos com a língua; mas deixou-se dormir de seguida e hoje, com a carta ao marido de manhã (para poder seguir ainda no correio) já bem esqueceu tudo e desce as escadas, caminho da cozinha, satisfeita, fazendo barulho basto com as chinelas nos degraus; Piedade não, Piedade não esquece, como esquecer-se do que lhe pertence? Parece-lhe até que dormiu mal, às voltas em suor, as orelhas escaldantes, a cabeça pesada, com o reavivar daquela velha ferida; Piedade cedo aprendeu a sofrer: desde que me conheço como gente que sei o que isso é, e nada mais eu fiz que não fosse isso, suar, amochar, sofrer desde que minha mãe morreu quando eu nasci, tal como aconteceu à mulher de Moisés, morreu de parto, e eu podia mesmo até ser filha dele, fui criada com os meus avós, pais da minha mãe, os quais me arranjaram ama, fazendo o que podiam, me deram tudo que tinham, pois meu pai voltou a casar em seguida e não quis mais saber de mim para nada, foi viver com a nova mulher e os filhos dela para Odemira, onde também nasci, nunca mais ele me querendo ver, talvez me tivesse ódio por eu ter morto a mãe, ou talvez ao contrário pensasse que eu é que lho tinha, por ter casado logo, inda hoje não sei, não compreendo, o que sei é que estive vinte anos sem o ver, desde que me conheço como gente senti a falta de ter pais, o desamparo primeiro, e a revolta depois, que isso me dava, não porque meus avós vivessem mal, viviam até bem, no monte duma herdade próxima de Odemira, situado no alto de um cabeço, nu, escalvado, e descendo empinado para a estrada, mas cresci sempre fechada com os velhos, não tive quase infância e nunca fui criança, quando ia à escola estava sempre séria, não brincava, não me lembro de ter puxado uma única vez os cabelos duma companheira, de ter saltado à corda ou levado pancada, fui mulher posta de lado, só, sem amparo, sem nada, mordendo-me de raiva porque me não falavam quando ia pela rua, por isso estudava com todo o afinco e talvez pudesse um dia chegar ao magistério, o que me destacaria já dentro da nossa classe, se os meus avós não tivessem morrido no curto espaço de dois meses, não me deixando peva, porque nicles, senão o seu trabalho de caseiros, eles tinham, e eu ali só com eles, com um e depois outro, a vê-los ir-se, e ver uma pessoa que para nós é tudo falecer, é temível, esse gritar com força, baixo, fundo, e já não ter resposta, já não estar ali nada senão um corpo imóvel, frio em breve, entregue como um cristo sobre a cruz, então vim viver com esta minha tia daqui, ela era solteira, brincalhona, e nos seus quarenta anos nem pensara em casar, porém lá imaginou que era melhor para a gente ter um homem em casa, um amparo, conhecia um, um pouco mais velho que ela, casaram, fizeram o negócio, mas ele não a ama e não me pode ver, não a amava, pois ela também agora já não sofre, ele empregava o tempo todo em torturá-la, deitando sempre as culpas para cima de mim, porque se embirrasse comigo sem o dizer a ela, podia ser que a amasse, mas não, fazia-o de propósito só por eu comer da mesa deles, oprimia-me, humilhava-me, foi assim que me resolvi a vir servir, sabia fazer por assim dizer tudo, tinha até jeito para desenho e bordado, bordava para fora, mas não podia mais viver em casa deles, rebentava, um dia endoidecia, ainda por cima o meu pai, volvidos vinte anos sem saber de mim, nem se interessando, veio cá o ano passado pela feira de Maio e foi fazer uma visita à minha tia, irmã da minha mãe». In Almeida Faria, A Paixão, 1965, Editorial Caminho, O Caminho da Palavra, Lisboa, 6ª edição, 1986.

Cortesia de Caminho/JDACT