sexta-feira, 24 de julho de 2015

Se Isto é um Homem. Primo Levi. «Hora após hora, este primeiro longuíssimo dia no vestíbulo do Inferno está a terminar. Enquanto o Sol se põe num vórtice de sinistras nuvens sanguíneas, mandam-nos finalmente sair da barraca…»

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Se isto é um homem
[…]
«Meditai que isto aconteceu:
recomendo-vos estas palavras,
esculpi-as no vosso coração
estando em casa andando pela rua,
ao deitar-vos e ao levantar-vos;
repeti-as aos vossos filhos.
Ou então que desmorone a vossa casa,
que a doença vos entreve,
Que os vossos filhos vos virem a cara»

«(…) Mas não gosta de falar: ninguém aqui gosta de falar. Somos novos, não temos nada e não sabemos nada; para quê perder tempo connosco? Explica-nos contrariado que todos os outros se encontram a trabalhar e voltarão à noite. Ele saiu hoje de manhã da enfermaria; por hoje, está dispensado do trabalho. Perguntei-lhe (com uma ingenuidade que poucos dias depois já devia parecer-me fabulosa) se nos iam devolver pelo menos as escovas de dentes; ele não riu, mas, com uma expressão de extremo desprezo no rosto, disse-me: Vous n’étes pas à la maison. E é este o refrão que ouvimos repetir por toda a gente: já não estão nas vossas casas, isto não é um sanatório, daqui não se sai a não ser pela chaminé (que é que isto significa? Iremos aprendê-lo bem mais tarde). E assim é: empurrado pela sede, descobri, no lado de fora de uma janela, um belo pedaço de gelo ao meu alcance. Abri a janela, arranquei o pedaço de gelo, mas imediatamente avançou um matulão que andava lá fora e mo tirou brutalmente. Warum?, perguntei-lhe no meu pobre alemão. Hier ist kein warum (aqui não há porquês), respondeu-me, empurrando-me para dentro à força. A explicação é repugnante mas simples; neste lugar, tudo é proibido, não por razões obscuras, mas porque o campo foi criado para tal. Se quisermos viver nele, temos de o perceber rapidamente e bem. ... O Santo Vulto aqui não vês, nem como em Serchio se toma aqui banho! (Divina Comédia)
Hora após hora, este primeiro longuíssimo dia no vestíbulo do Inferno está a terminar. Enquanto o Sol se põe num vórtice de sinistras nuvens sanguíneas, mandam-nos finalmente sair da barraca. Vão dar- nos água para beber? Não, dispõem-nos mais uma vez em filas, levam-nos para uma ampla parada que ocupa o centro do campo e mandam-nos formar meticulosamente. Depois, não acontece mais nada durante mais de uma hora: parece que estamos à espera de alguém. Uma fanfarra começa a tocar, junto à porta do campo: toca Rosamunda, a bem conhecida cantiga sentimental, e isto parece-nos tão estranho que nos olhamos uns aos outros, sorrindo; nasce dentro de nós uma sombra de alívio, talvez todas estas cerimónias mais não sejam do que uma colossal farsa de gosto teutónico. Mas a fanfarra, depois de Rosamunda, continua a tocar outras marchas, umas atrás das outras, e então aparecem os grupos dos nossos companheiros, que regressam do trabalho. Avançam em colunas de cinco; avançam com um passo estranho, não natural, duro, como fantoches rígidos, feitos apenas de ossos: mas avançam acompanhando escrupulosamente o compasso da fanfarra.
Também eles se dispõem como nós, segundo uma ordem minuciosa, na ampla parada; uma vez entrado o último grupo, contam-nos e voltam a contar-nos durante mais de uma hora e efectuam demorados controlos que parecem ser dirigidos por um tipo com a farda às riscas, o qual presta contas a um pequeno grupo de SS armado até aos dentes. Finalmente (já é de noite, mas o campo está fortemente iluminado por faróis e holofotes), sente-se gritar Absperre!, e então todas as esquadras destroçam num vaivém confuso e turbulento. Agora, já não se deslocam rígidos e empertigados como dantes: cada um arrasta-se com esforço evidente. Noto que todos trazem na mão ou pendurada no cinto uma marmita de chapa de ferro quase tão grande como uma bacia. Também nós, recém-chegados, vagueamos entre a multidão, à procura de uma voz, de um rosto amigo, de um guia. Encostados à parede de madeira de uma barraca estão dois rapazes sentados no chão: parecem muito novos, dezasseis anos no máximo, ambos com o rosto e as mãos sujos de fuligem. Um deles, ao passarmos, chama-me e faz-me em alemão algumas perguntas que não percebo; depois pergunta-me de onde vimos. Italien, respondo; queria perguntar-lhe muitas coisas, mas o meu vocabulário alemão é muito limitado. És judeu?, pergunto-lhe. Sou judeu polaco. Há quanto tempo estás num Lager?  Há três anos, e levanta três dedos. Deve ter entrado criança, penso horrorizado; pelo menos, isto significa que há quem consiga sobreviver aqui. Qual é o teu trabalho? Schlosser, responde. Não percebo; Eisen; Feuer (ferro, fogo) insiste ele, e acena com as mãos como quem bate com o martelo numa bigorna. É um ferreiro, portanto. Ich Chemiker, declaro eu; e ele acena gravemente com a cabeça: Chemiker gut. Mas tudo isto tem a ver com o futuro longínquo: o que me atormenta, neste momento, é a sede.
Beber, água. Nós nada água, digo-lhe. Olha para mim com o rosto sério, quase severo, e diz pausadamente: Não bebas água, camarada, e a seguir outras palavras que não percebo. Warum? Geschwollen, responde telegraficamente: abano a cabeça, não percebi. Inchado, dá-me a entender, inchando as bochechas e representando com as mãos uma monstruosa tumescência do rosto e da barriga. Warten bis heute abend. (Esperar até hoje noite) traduzo eu palavra por palavra. Depois diz-me: Ich Schlome, Du? Digo-lhe o meu nome, e ele perguntou: Onde a tua mãe?' Em Itália. Schlome fica surpreendido. Judia na Itália? Sim, explico como melhor sei, escondida, ninguém conhece, fugir, não falar, ninguém ver. Percebeu; agora levanta-se, aproxima-se e abraça-me timidamente. A aventura terminou, sinto-me invadido por uma tristeza serena que é quase alegria. Nunca mais voltei a ver Schlome, mas não esqueci o seu rosto sério e bondoso de criança, que me acolheu à porta da casa dos mortos». In Primo Levi, Se Questo è um Uomo, Einaudi, Turim, 1958, Se Isto é um Homem, 1998, Tradução de Simonetta Neto, 10ª edição, 2013, Teorema, ISBN 978-972-695-945-8.

Cortesia de Teorema/JDACT