sábado, 25 de julho de 2015

O Nome das Coisas. Poesia. Sophia Breyner Andresen. «Aquilo que não foi nem foste ficou dito como ilha surgida a barlavento com prumos sondas astrolábios bússolas: procedeste ao levantamento do desterro, nasceste depois e alguém…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Ciclades (evocando Fernando Pessoa)
«A claridade frontal do lugar impõe-me a tua presença
o teu nome emerge como se aqui
o negativo que foste de ti se revelasse
viveste no avesso
viajante incessante do inverso. Isento de ti próprio
viúvo de ti próprio
em Lisboa cenário da vida
e eras o inquilino de um quarto alugado por cima de uma leitaria.
O empregado competente de uma casa comercial
o frequentador irónico delicado e cortês dos cafés da Baixa.
O visionário discreto dos cafés virados para o Tejo
(onde ainda no mármore das mesas. Buscamos o rastro frio das tuas mãos,
o imperceptível dedilhar das tuas mãos)
esquartejado pelas fúrias do não-vivido
à margem de ti dos outros e da vida.
Mantiveste em dia os teus cadernos todos
com meticulosa exactidão desenhaste os mapas
das múltiplas navegações da tua ausência.
Aquilo que não foi nem foste ficou dito
como ilha surgida a barlavento
com prumos sondas astrolábios bússolas:
procedeste ao levantamento do desterro,
nasceste depois
e alguém gastara em si toda a verdade
o caminho da Índia á fora descoberto.
Dos deuses só restava
o incerto perpassar
no murmúrio e no cheiro das paisagens
e tinhas muitos rostos
para que não sendo ninguém dissesses tudo.
Viajavas no avesso no inverso no adverso
porém obstinada eu invoco, ó dividido
o instante que te unisse
e celebro a tua chegada às ilhas onde jamais vieste
estes são os arquipélagos que derivam ao longo do teu rosto,
estes são os rápidos golfinhos da tua alegria
que os deuses não te deram nem quiseste.
Este é o país onde a carne das estátuas como choupos estremece
atravessada pelo respirar leve da luz
aqui brilha o azul-respiração das coisas
nas praias onde há um espelho voltado para o mar.
Aqui o enigma que me interroga desde sempre
é mais nu e veemente e por isso te invoco:
porque foram quebrados os teus gestos
quem te cercou de muros e de abismos
quem derramou no chão os teus segredos.
Invoco-te como se chegasses neste barco
e poisasses os teus pés nas ilhas
e sua excessiva proximidade te invadisse
como um rosto amado debruçado sobre ti
no estio deste lugar chamo por ti
que hibernaste a própria vida como o animal na estação adversa
que te quiseste distante como quem ante o quadro p’ra melhor ver recua.
E quiseste a distância que sofreste.
Chamo por ti, reúno os destroços as ruínas os pedaços
porque o mundo estalou como pedreira
e no chão rolam capitéis e braços
colunas divididas estilhaços
e da ânfora resta o espalhamento de cacos
perante os quais os deuses se tornam estrangeiros.
Porém aqui as deusas cor de trigo
erguem a longa harpa dos seus dedos
e encantam o sol azul onde te invoco
onde invoco a palavra impessoal da tua ausência
pudesse o instante da festa romper o teu luto
ó viúvo de ti mesmo.
E que ser e estar coincidissem. No um da boda
como se o teu navio te esperasse em Thasos,
como se Penélope,
nos seus quartos altos
entre seus cabelos te fiasse».
Poema de Sophia Mello Breyner Andresen, in ‘O Nome das Coisas’

In Círculo de Poesia, Morais Editores, 1977.

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