sexta-feira, 10 de julho de 2015

O Amor de Camilo Pessanha. António Osório. «Uma história de amor única das nossas letras, mantida sob sigilo, e revelada um século depois. Em grande parte inéditas, cartas, dedicatórias, fotografias, os dois são evocados ao longo da vida…»

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Ana de Castro e o Salvamento da Clepsydra
«(…) E traz um pós-escrito de uma beleza tão impressionante como o pedido da sua amiga ao sugerir-lhe que fosse despedir-se dela, antes de partir para o Oriente: P.S., Seria uma iniquidade pedir-lhe que me escrevesse; mas, quando houver jornais, continuo a pedir-lhe que não se esqueça de me mandar um ou outro, de vez em quando, e que eu reconheça no endereço a sua letra. É também para mim uma doce evocação familiar.
Assim acabou a correspondência de Camilo para Ana. Infelizmente, a desta para ele, como as demais, perdeu-se na indescritível desordem da casa de Pessanha em Macau. Quando da última vinda de Camilo Pessanha a Portugal, em 1915, em gozo de licença, como se deu o encontro dos dois? De quem partiu a iniciativa? Ana de Castro Osório gozava de grande prestígio. A sua obra e actividade editorial eram publicamente reconhecidas, tendo sido os seus livros de leitura aprovados oficialmente e adoptados nas escolas do nosso país e do Brasil. Edições da Lusitânia, com sede na sua casa, em Lisboa, a editora da Clepsydra. Como então se dizia, recebia, às quintas-feiras os escritores, os jovens autores, os jornalistas. Sem nunca dele se servir, estava próxima do poder, era amiga pessoal de Afonso Costa e de outros dirigentes republicanos e, como disse-mos, em breve desempenharia um papel relevante, criando, após a Primeira Guerra Mundial, a Cruzada das Mulheres Portuguesas, com a finalidade de prestar apoio aos nossos soldados e às suas famílias sem recursos e, depois, aos feridos, mutilados e estropiados. No apogeu intelectual, tinha então quarenta e três anos.
Sabemos hoje que a iniciativa do reencontro partiu dela (nem outra coisa seria de esperar). Uma história encantadora pela discrição, pelo tacto e pelo afecto. Ana tinha um sobrinho de que gostava muito, António (António Pereira Osório de Castro (1901-1972), natural de Setúbal; ilustre advogado, foi director do Contencioso do Banco de Portugal e, depois, administrador; ele e sua mulher, a poetisa Maria Valupi, eram meus tios e padrinhos), e foi ele, que era, como a escritora dizia, o seu pajem, então com catorze anos, o incumbido de trazer Camilo de volta. Esse curioso episódio foi contado pelo próprio, cinquenta anos depois de ter conhecido Pessanha. Nessa altura, o jovem vivia com os avós e com a tia Ana Castro Osório, que me queria como a qualquer dos seus filhos e a quem eu amava como se fosse minha Mãe.
Numa manhã desse Outono de 1915, minha tia [...] disse-me que queria dar-me uma missão delicada: a de procurar, nessa manhã, no Hotel Francfort, do Rossio, e tentar trazer para almoçar em nossa casa o dr. Camilo Pessanha, chegado de Macau, grande artista e grande amigo da nossa família, velho e querido companheiro de Coimbra de meu tio Alberto Osório Castro. De posse da minha credencial, corri ao Francfort e, poucos minutos depois, estava junto à cama onde ainda se encontrava Camilo Pessanha [...]. Correspondeu, enternecido, aos meus cumprimentos, releu, na carta, o meu nome e aquele com que, familiarmente, me tratavam, [...] mostrou-me o mais bondoso sorriso quando lhe afirmei que poderia esperar, que o levaria comigo e pediu-me, então, que o aguardasse um pouco na sala do hotel, enquanto se aprontava. [...] Devo acrescentar que ao ver assim, criança que eu era, pela primeira vez o dr. Camilo Pessanha, [...] julguei ter visto alguém que me parecia um santo.
Não era um santo, mas um sofredor, um desesperado terrível. Levado pelo adolescente, assim regressou a casa de Ana, e aí, nesse mesmo dia, almoçou, como a sua amiga desejava e conseguiu! António Osório Castro recorda os intermináveis jantares e os serões, no Arco do Limoeiro, com Camilo Pessanha recitando os seus versos ou falando da arte chinesa! Intermináveis os jantares, não por abundância de pratos, mas porque não havia possível seguimento neles: Camilo falava, falava, esquecido de comer, nós ouvíamos... Terão sido estes quatro meses da última estada em Lisboa os mais felizes daquela atormentada vida? Ouçamos por ora o jovem pajem, de sua tia, que se transforma no de Pessanha, e que este familiarmente tratava por Antoneco. Passou a haver entre ambos um quotidiano convívio». In António Osório, O Amor de Camilo Pessanha, edições ELO, obra apoiada pela Fundação Oriente, colecção de Poesia e Ensaio, Linha de Água, 2005, ISBN 972-8753-43-8.

Cortesia da F. Oriente/Linha de Água/JDACT