sexta-feira, 24 de julho de 2015

As Saias de Elvira e Outros Ensaios. Eduardo Lourenço. «… dois esplêndidos seios de mulher, com um botãozinho de rosa no peito, e era ela, a minha Adélia, que assim estava no alto da cruz nua, soberba, risonha, vitoriosa, profanando o altar, com os braços abertos para mim»

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«(…) Poucos criadores terão ilustrado com tanto génio o carácter intrinsecamente fetíchista, idólatra, de todo o erotismo, como Eça de Queirós. São célebres as fixações dos seus heróis ou heroínas, a absolutização de uma parte do corpo (pé, pescoço, ombro, o que então estava mais à vista), como declic para a apropriação fantasmática do resto. Maior é a distância em termos de mera apropriação fascinada do pormenor em relação ao todo visado, maior é a carga erótica de que se reveste. Como já Sócrates observara no Fédon, mas agora explorado com requintes demoníaco. Eça recria o corpo erótico ainda com mais intensidade menos através da rêverie que o pormenor do corpo desejado lhe faculta, que sobretudo daquilo que dele se evola ou com ele esteve em contacto. E mais do que tudo daquilo que por analogia permite à memória, já tão pré-proustiana de Eça, recuperar, depurado, por assim dizer, o próprio perfume do erotismo: À tardinha quando refrescava, ia espalhar para a Baixa. Mas cada cortina de casa me lembrava a intimidade da alcovinha de Adélia, num simples par de meias, esticado na vitrine de uma loja, eu revia com saudade a perfeição da sua perna; tudo o que era luminoso me sugeria o seu olhar; e até o sorvete de morango no Martinho, me fazia repassar nos lábios o adocicado e gostoso sabor dos seus beijos.
Pareceria que este erotismo em segundo grau, esta sublimação relativa dele pela memória, contivesse, em termos afectivos, sentimentais, a suficiente volúpia capaz de apaziguar a violência e angústia latente do surto erótico, da sensualidade dos primeiros encontros, como no caso de Amaro e Amélia. Mas nunca o erotismo queirosiano tem a sua raiz ou o seu ponto de fuga em si mesmo. Como na sua essência ou em todo o caso, na sua encenação ficcional, é da ordem da tentação, quer dizer de uma desordem dos sentidos e do espírito que submete a alma à vertigem pura da queda, no seu devenir é fuga para espaços ou objectos que o livrem da tentação. Todo o erotismo de Eça se recorta e ao mesmo tempo se exaspera sob o fundo de uma visão ideal antierótica, estado adâmico original, imagem redentora ou exemplar sem sombra do pecado original. O resultado é conhecido: de remédio contra a tentação, essas realidades-mitos tornam-se a expressão alucinatória de um Desejo sem referente humano, amalgamando num só, o êxtase barroco que tem como objecto Deus e o êxtase erótico profano que Adélia lhe suscita. Sem transição, logo a seguir à passagem sobre as saudades da alcovinha de Adélia, o narrador continua: À noite, depois do chá, refugiava-me no oratório, como numa fortaleza de santidade, embebia os meus olhos no corpo de ouro de Jesus, pregado na sua linda cruz de pau-preto. Mas então o brilho fulvo do metal precioso ia, pouco a pouco, embaciando, tomava uma alva cor de carne, quente e tenra, a magreza do Messias triste, mostrando os ossos, arredondava-se em formas divinamente cheias e belas; por entre a coroa de espinhos, desenrolavam-se lascivos anéis de cabelos crespos e negros; no peito sobre as duas chagas, levantavam-se rijos, direitos, dois esplêndidos seios de mulher, com um botãozinho de rosa no peito, e era ela, a minha Adélia, que assim estava no alto da cruz nua, soberba, risonha, vitoriosa, profanando o altar, com os braços abertos para mim!
Por mais paródico, voluntariamente satírico, que suponhamos este, e outros textos de Eça, o que está escrito está escrito, e nessa passagem não está apenas fantasmada a transmutação do corpo de Jesus no corpo de Adélia mas a simétrica confusão do corpo de Adélia com o corpo de Jesus. Eça foi a mais audaciosa e inteligente imaginação do seu tempo, mas não se pode exigir que lhe fosse consciente o que no tempo pós-freudiano não pode ser ocultado com o tipo de autoconsciência que Eça (o seu narrador), explicitando sempre de mais as suas audácias, ilustra para salvaguarda sua: Eu não via nisto uma tentação do Demónio, antes me parecia uma graça do Senhor. E como a lógica da sua provocação, a dos irresistíveis mecanismos que a determinam e são os da sua ficção, não tem entraves, Eça continua: Comecei mesmo a misturar nos textos das minhas rezas as queixas do meu amor. O Céu é talvez grato, e esses inumeráveis santos a quem eu prodigalizava novenas e rezas desejariam talvez recompensar a minha amabilidade, restituindo-me as carícias que me roubara o homem cruel da capa à espanhola. Se em vez de textos das queixas do meu amor lermos textos da minha ficção, a paisagem erótica de Eça ilumina-se de insuspeitadas e ambíguas claridades. A sua denegação é supérflua. Demasiado sabe ele que o campo que está lavrando, pela primeira vez entre nós, é, no só por metáfora ou provocação libertina, mais que o do Tentador, o da vertiginosa tentação sem o qual o seu imaginário jamais teria ousado tais cenas. Ou, o que mais importa: descrevê-las usando um código que é a exacta transposição daquele que estrutura as orações beatamente obscenas que Amaro, para levar a bom fim a educação erótica de Amélia, tanto finge abominar, gozando como Amélia, mas conscientemente, o deleite da abominação». In Eduardo Lourenço, As Saias de Elvira e Outros Ensaios, Gradiva, Lisboa, 2006, ISBN 989-616-151-8.

Cortesia de Gradiva/JDACT