sábado, 18 de julho de 2015

A Rosa dos Ventos. Materiais para uma Opereta sem Música. Gonzalo Torrente. «Carlos Guilherme tinha-me obrigado a mandar a policia copiar ‘todas as cartas’ que entravam ou saiam do ducado… um capricho que me permitiu conhecer a destempo os amores de Amélia com Franz Liszt»

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«(…) Mas, caramba, Ferdinando, disse-me a tia Carolina, que também o seria de Cados, se Carlos não fosse filho de quem é, não compreendes que ele nunca te perdoará o facto de teres a figura que tens e de as pessoas o saberem? Devias ter-te torcido um pouco e posto essa cara de tonto que toda a gente te atribui. A tia Carolina sempre me quis bem e, quando me expulsaram do país, mandou-me recado dizendo que, até encontrar melhor acomodação, podia refugiar-me na sua villa da Riviera. Por sorte, o que me oferecia Christian ficava muito mais perto e eu estava mal de dinheiro na altura da fuga, para me poder ir meter com dignidade de vencido em assuntos de viagens para tão longe. Pois o que aconteceu foi que Carlos Guilherme começou a mandar-me recados e bilhetes diplomáticos para eu fazer isto e aquilo. A gente do meu país tem pernas para andar e não é preciso governá-la, mas Carlos Guilherme queria fazê-lo mesmo antes de nos invadir, ainda que por grão-duque interposto. Estava bem informado, metia-se em tudo mas, como no meu país nunca acontecia nada, ele inventava perigos e avisava-me contra esta ou aquela conspiração, este ou aquele grupo suspeito, esta ou aquela sociedade secreta que nunca estavam contra mim, mas sim contra ele e o seu reino, promovidos, protegidos e pagos pela Inglaterra. Manteve-me assim, sob vigilância, durante vários anos, ainda que o acossassem pessoas e questões mais importantes do que eu e o meu país e se, por fim, se decidiu a invadir-nos e a pôr-me na rua (é uma maneira de dizer), foi num momento de descanso, pela conveniência estética de situar, entre uma operação grandiosa e uma operação ruinosa uma terceira, delicada e de certo modo elegante: por uma questão de equilíbrio e não se sabe se, também, de harmonia. Limitou-se a enviar-me um correio pessoal com o seguinte bilhete: às nove da manhã do dia tal (que era amanhã), cem homens do meu exército entrarão no teu ducado e tomarão posse dele em nome do meu império e em virtude da minha indiscutível vontade. Como receberás este bilhete na própria tarde do dia anterior, tens tempo de preparar a bagagem e de tomar um barco que te leve para fora do país. Deixa ficar a tua filha Rosanna porque, como comandante desses cem homens, irá o nosso primo segundo Raniero, que vai casar com ela porque deseja ser grão-duque consorte e comandante honorário dos teus cinquenta soldados. Podes levar os teus objectos pessoais. Como tenho um inventário completo dos quadros e das jóias que o castelo contém, se faltar alguma coisa, a minha justiça recuperá-la-á nem que te escondas debaixo dos Alpes. Não te preocupes com a tua reputação: não interessa ao teu povo e, para tranquilizar as potências, os meus juristas têm preparada uma impecável justificação, e um filósofo a sua, mais transcendente. Boa sorte.
Do que o meu primo não me advertiu foi de que Raniero violaria Rosanna sem chegar a tirar as esporas, antes de fazê-la sua esposa à força. O mensageiro ofereceu-me, quando acabei de ler a carta, o inventário dos objectos do meu palácio. Tenho ordem para lho entregar, no caso de necessitar consultá-lo. A verdade é que quase não me dava tempo para averiguar que coisas eram minhas e quais não. A minha roupa, claro, a minha navalha da barba, os retratos da minha falecida mulher e talvez alguma bengala. Ah, e a correspondência! A correspondência não figurava no inventário. Alguns anos antes, Carlos Guilherme tinha-me obrigado a mandar a policia copiar todas as cartas que entravam ou saiam do ducado, o que me obrigou a duplicar o pessoal e a pagar-lhe: uma ruína! Ocorreu-me, contudo, que, já que era eu a pagar, se fizessem duas cópias: uma, a que exigia o meu primo e, a outra, para mim: um capricho que me permitiu conhecer a destempo e sem remédio já, os amores de Amélia com Franz Liszt, um músico genial!, e não com esse prepotente do Bismark de quem se falou. Creio que, durante os vinte ou vinte e cinco anos que durou a violação policial da correspondência nacional, não passaram de três as cartas que poderiam interessar a Carlos Guilherme. Ignoro o que fez com as outras. Eu arquivei e classifiquei todas; algumas, como seria de prever, li-as. Primeiro, enquanto fui grão-duque porque, quando à tarde me deixavam sozinho, me aborrecia; depois, no desterro porque, ao lê-las, me parecia reviver acontecimentos esquecidos e conhecer pessoas desconhecidas. Essas cartas são milhares. Contêm uma infinidade de histórias. Ainda que segregasse o montão das comerciais e triviais, com o restante teria com que compilar vinte ou trinta volumes de grande formato e letra pequena. Não rejeito a ideia de as ordenar, de modo a que essas histórias, agora um caos, se organizem; e de as publicar depois, mas seria preciso viver muitos anos e ter muito dinheiro, e sei que não o terei nunca». In Gonzalo Torrent, La Rosa de los vientos, A Rosa dos Ventos, Materiais para uma Opereta sem Música, Difel, Linda-a-Velha, 1995, ISBN 972-29-0326-8.

Cortesia de Difel/JDACT