quinta-feira, 23 de julho de 2015

A Construção da Identidade Galega nos Discursos Poéticos. Rosália de Castro. Henrique Samin. «… está falando através da máscara, ou seja: não foram pessoas específicas que fizeram o pedido para Rosalía; foi a própria Galiza, representada por sua paisagem, que fez o pedido para a cantora que nela habita»

jdact e cortesia de wikipedia

«(…) A esta altura, cabe destacar um dos mais importantes centros de cultivo do Celtismo na Galiza: a chamada Cova Céltica. Este núcleo surgiu na Coruña, na livraria de Uxío Carré Aldao, ele mesmo um importante intelectual em seu tempo, e tornou-se um duplo centro de resistência: em primeiro lugar, foi o local no qual reuniam-se os escritores regionalistas que, em reação contra os vanguardistas que escreviam em castelhano a fim de seguir as novas tendências madrilenhas, ali se reuniam para criar e publicar escritos em galego. Em segundo lugar, é preciso ter em mente que faziam parte da Cova Céltica tanto o já mencionado historiador Manuel Murguía quanto Eduardo Pondal; e contra Murguía, defensor das origens célticas da Galiza, estava Celso Garcia La Riega, intelectual pontevedrês que, em oposição àquele, defendia que as origens do povo galego eram gregas, e não célticas. Por este motivo, Garcia La Riega apelidou ao grupo da livraria de Carré, pejorativamente, la cueva céltica; mas o grupo, apoderando-se da denominação, traduziu-a para o galego. Desta forma, a Cova Céltica tornou-se um centro cultural que desempenhou importante papel neste processo de construção da identidade galega, ao tornar-se um centro activo de defesa do Celtismo. Passaremos, agora, a um exame mais pormenorizado de algumas obras de Rosalía de Castro e Eduardo Pondal, a fim de demonstrar mais explicitamente de que maneira a construção da identidade galega é nelas realizada.

A cantora: território e tradição nos cantares gallegos de Rosalía de Castro
Como mencionamos anteriormente, os Cantares gallegos de Rosalía de Castro foram idealizados pela poetisa como uma forma de retomar o lirismo galego, dignificando sua língua e reverenciando as belezas e tradições da Galiza, havendo a poetisa se inspirado no Libro de los cantares de Antonio Trueba. O ponto de partida de ambas as obras é o mesmo: trata-se de resgatar motivos populares por via de glosas e apropriações temáticas, procedimento percebido como uma forma de entrar em contacto com o lirismo popular e, através deste, com o substrato das próprias tradições e costumes do povo. Disso deriva a similaridade do ternário que encontramos nestes dois livros: como observa Carballo Calero; tradução nossa, à obra de Trueba comparecem motivos como o da moça desonrada, da romaria, o canto nocturno dos pequenos animais, a ausência, a separação dos amantes na alvorada, temas que também comparecem à obra de Rosalía. A escritora galega, no entanto, realiza seu projecto lançando mão de um recurso particular: a construção de uma persona literária, a saber, a figura da cantora que emoldura os Cantares, fazendo-se explicitamente presente no primeiro e no último poemas do livro, mas também podendo ser entrevista em diversos outros momentos da obra. Vejamos como se configura esta cantora rosaliana. Consoante Pociña e López: Rosalía recorre à utilização deste personagem, a cantora, para estabelecer uma distância entre a autora e a sua obra, transferindo para esta máscara a tarefa de dignificar o seu povo e a sua língua, deixando ao mesmo tempo diluída asua própria personalidade; deste modo fica encoberta a ousadia de fazer algo que é novo e importante.
O sentido deste recurso está, na verdade, implícito no prólogo dos Cantares gallegos. Rosalía parece de facto sincera quando não se considera capaz de desempenhar à altura a tarefa de representar uma porta-voz da Galiza; talvez de facto padeça da angústia autoral que postulam os mesmos Pociña e López, considerando-se deslocada tanto do espaço da palavra pública, até então fundamentalmente ocupado por homens, quanto do espaço da palavra poética, uma vez que se apresenta como seguidora de uma proposta literária inovadora, inaugurada por Antonio Trueba. Deste modo, a adopção de uma máscara literária representa uma forma de instaurar uma clivagem entre Rosalía e seus poemas, que funcionaria simultaneamente como refúgio defensivo e recurso criativo, sendo este segundo sentido o que mais nos interessa. A cantora rosaliana faz a sua primeira aparição no poema que abre os Cantares gallegos. Dividido em quatro partes, o poema começa com uma incitação para o canto, dirigida a uma certa menina gaiteira, adjectivo que, mais que a alegria, evoca, segundo Pociña e López, uma certa frivolidade que identifica-a às meninas das cantigas medievais, muitas das quais tão relacionadas ao lirismo popular quanto as poesias de Rosalía. Nas demais seções do poema, o discurso é transferido para a primeira pessoa, o que nos permite supor que seja a própria Rosalía a cantora, o que nos remete à já mencionada noção de máscara. É como se a poetisa, na parte inicial, criasse uma trincheira protectora, para só a partir da segunda secção se expor de facto. Reforça esta hipótese a estância inicial da segunda parte:

Assim me pediram
na beira do mar,
ao pé das ondinha
que vêm e que vão.

Assim me pediram
na beira do rio
que corre entre as ervas
do campo florido.

Note-se que Rosalía não explicita quem fez o pedido; ao invés disso, apenas descreve o lugar onde tal pedido foi realizado. Todavia, é preciso considerar que a autora está falando através da máscara, ou seja: não foram pessoas específicas que fizeram o pedido para Rosalía; foi a própria Galiza, representada por sua paisagem, que fez o pedido para a cantora que nela habita». In Henrique Samin, A construção da Identidade Galega nos Discursos Poéticos de “Rosália de Castro” e Eduardo Pondal, Conexão Letras, volume 2, nº 2, 2006.

Cortesia de Conexão Letras/JDACT