terça-feira, 9 de junho de 2015

Wolf Hall. Hilary Mantel. «Ele tem uma sensação de movimento, como se o chão sujo se convertesse no Tamisa. O solo cede e oscila sob seu corpo; ele exala o ar, a última grande expiração…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Três são as espécies de cenas: uma se chama trágica, a segunda, cómica, e a terceira, satírica. Os cenários são diferentes e diversos entre si em esquema. Cenas trágicas dispõem-se com colunas, frontispícios, estátuas e outros artefactos régios; cenas cómicas apresentam-se em ambientes privados, com sacadas e vistas para diversas janelas, à maneira das habitações populares; cenas satíricas são decoradas com bosques, grutas, montanhas e outras locações campestres ao estilo de paisagem». In Vitrúvio, De Architectura, sobre o teatro, 27 a.C.

Cruzando o Mar Estreito. Putney, 1500
«Agora levante-se daí. Rendido, zonzo, ele jaz em silêncio; estatelado nas pedras do pátio. Girando a cabeça para o lado, os seus olhos buscam o portão, como se alguém fosse chegar para ajudá-lo. Bastaria um só golpe, bem dado, para matá-lo. O sangue do corte na cabeça, resultado do primeiro ataque de seu pai, escorre pelo rosto. Para piorar, está cego do olho esquerdo; mas, se forçar a vista, consegue ver as costuras desfeitas da bota do pai com o canto do olho direito. A grossa linha desprendeu-se totalmente do couro e um nó duro atingiu a sua sobrancelha, abrindo mais um corte. Agora levante-se daí! Walter urra para o filho no chão, escolhendo onde chutá-lo da próxima vez. O rapaz ergue a cabeça 4 ou 5 centímetros do chão e rasteja para a frente, tentando avançar sem deixar expostas as mãos, pois Walter gosta de as pontapear. O que é isso, uma enguia, é o que tu és?, pergunta o pai, que recua, toma impulso e acerta mais um pontapé. Ele sente o seu último fôlego ser arrancado; pensa ser este, talvez, o seu último suspiro. A testa volta para o chão; ele espera, deitado, que o pai se lance sobre seu corpo. A cadelinha Bella ladra, trancada num quarto. Vou sentir saudades da minha cadelinha, pensa o garoto. O pátio cheira a cerveja e a sangue. Alguém grita, lá pelas margens do rio. Não sente dor alguma, ou talvez na verdade tudo esteja doendo, tornando impossível concentrar-se numa dor específica. Mas sente frio, sente-o num só lugar: somente nos ossos do rosto, que estão colados às pedras. Olhe só isso aqui, olha só!, urra Walter. Ele pula num pé só, como se estivesse dançando. Vê o que eu fiz. Arrebentei a minha bota chutando a tua cara. Centímetro a centímetro, adiante. Não importa se Walter o chama de enguia ou verme ou cobra. Cabeça baixa, não o provoque. O garoto tem o nariz entupido de sangue e precisa abrir a boca para respirar. A distracção momentânea do pai com a bota boa que acaba de perder dá ao menino a chance de vomitar. Muito bem, grita Walter. Podes cuspir à vontade por todo o lado. Pode cuspir no meu pátio limpo. Vamos, garoto, de pé. Vamos ver se tu consegues levantar-te. Pelo sangue do maldito Cristo, levante-se daí agora!
O garoto pensa: maldito Cristo? O que ele quer dizer com isso? Ele vira a cabeça de lado, os cabelos chafurdando no próprio vómito; a cadela ladra, Walter berra e os sinos badalam do outro lado do rio. Ele tem uma sensação de movimento, como se o chão sujo se convertesse no Tamisa. O solo cede e oscila sob seu corpo; ele exala o ar, a última grande expiração. Desta vez tu conseguiste,  uma voz diz a Walter. Mas o garoto cerra os ouvidos, ou é Deus quem os cerra. Ele é arrastado pela corrente, uma grande maré negra. Já é quase meio-dia quando recobra a consciência, e ele ampara-se na parede da entrada da taberna Pégaso, o Cavalo Alado. A sua irmã Kat vem da cozinha com uma bandeja de tortas quentes nas mãos. Quando ela o vê, quase  derruba a comida toda. Escancara a boca de espanto. Olhe só para ti! Kat, não grites, isso dói. Ela berra para o marido: Morgan Williams! Kat dá meia-volta, os olhos em pânico, o rosto avermelhado pelo calor do forno. Levem essa bandeja, pelo corpo de Cristo, onde estão todos? Ele treme da cabeça aos pés, exactamente como Bella tremia quando caiu do barco naquela vez. Uma menina aparece de súbito. O patrão foi para a cidade. Eu sei disso, idiota. Ver o irmão naquele estado apagou a lembrança da mente de Kat. Ela enfia a bandeja nas mãos da menina. Se deixares isso ao alcance dos gatos, vais levar bofetadas nas orelhas até ver estrelas. Tendo se livrado da bandeja, ela une as mãos vazias num momento de ardente oração. Brigando de novo, ou foi o pai? Sim, ele indica, sacudindo a cabeça vigorosamente, o que faz caírem coágulos de sangue do nariz; sim, e aponta para si mesmo, como se dissesse: Walter andou por aqui. Kat pede uma bacia, pede água, pede uma bacia com água, um pano, pede que o diabo se levante agora mesmo e leve embora o seu lacaio Walter. Senta-te, antes que desmaies. Ele tenta explicar que acabou de se levantar. Estava no pátio. Pode ter acontecido há uma hora, ou mesmo há um dia inteiro, e, pelo que ele sabe, hoje talvez seja amanhã; mas não, pois se tivesse ficado no chão um dia inteiro, certamente Walter teria aparecido para matá-lo por estar no meio do caminho, ou então as feridas teriam coagulado um pouco e ele agora estaria sentindo dor por todo o corpo e quase não conseguiria se mexer; ele sabe, por sua vasta experiência com os punhos e botas de Walter, que o segundo dia pode ser pior que o primeiro». In Hilary Mantel, Wolf Hall, 2009, Editora Record, tradução de Heloisa Mourão, 2011, ISBN 978-850-109-768-2.

Cortesia ERecord/JDACT