domingo, 28 de junho de 2015

Vida Ignorada de Leonor Teles. António Cândido Franco. «A História de Portugal teve em Leonor Teles e em João de Avis uma bifurcação de dois ramais, ou de duas vontades, em que um ficou por seguir. A História correu até hoje, a toda a velocidade, impante e ufana…»

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O Comércio do Invisível
«(…) Estava porém certa que o mundo físico e visível tal como se desenvolvera não era para si. Ela via a criação do mundo terreno de acordo com o relato bíblico. A Terra fora a última criação do Criador. Pretendera este por um lado emendar a mão, depois de alguns dos seres celestes se revoltarem contra a sua ordem e se exilarem nos recantos mais afastados do universo, criando aí um reino independente, a partir do qual iniciaram uma guerra declarada aos seres que lhe haviam permanecido fiéis, e por outro quisera descansar um pouco das fadigas da criação, vindo tomar a brisa cósmica naquele parque chamado Terra, com essa novidade que eram os seus habitantes. Acreditara ingenuamente que essa plateia permaneceria arredada da luta dos seus anjos. A criação da Terra obedecera a projecto distinto e estava apenas fadada a ser um intervalo de repouso nas trabalhosas canseiras em que o Criador se metera depois da rebelião dos seus anjos. O plano dessa criação desconhecia o Bem e o Mal e era por isso irrelevante nas premissas da rebelião.
Descuidara entretanto o Criador o extraordinário avanço dos revoltosos. Confinados a princípio a um pequeno recanto dos limites do universo, tinham vindo a multiplicar os seus domínios. Souberam eleger entre eles um condutor seguro, o Diabo ou o Divisor, que lhes dera uma estratégia de multiplicação imparável. Aproximavam-se assim dos planos mais luminosos da Criação como uma enchente se aproxima das terras secas. Durante largo espaço, funcionou a Terra como o lugar onde o Criador, longe do Bem e do Mal, descansava das suas preocupações, que muitas eram por via daquela guerra. Era o Paraíso, onde Deus, depois da experiência meio falhada da criação dos anjos, tentara emendar a mão, voltando a ter novas crias, desta vez mansas, ingénuas, humildes. Mas a capacidade de multiplicação do Diabo era já de tal ordem que se apercebeu da totalidade dos propósitos do Criador e se conseguiu insinuar no novo plano da Criação, subvertendo-o por dentro. Para isso conseguiu infiltrar na Terra o Bem e o Mal, que eram o meio ou a essência da luta dos seus anjos. Quando se apercebeu da presença destas duas forças junto do homem e da mulher, o desespero do Criador foi enorme. Viu os seus filhos mais jovens, nos quais apostara uma segunda criação isenta dos erros ou das imprevisibilidades da primeira, pasto das mesmas divisões em que a primeira criação soçobrara. Teve um momento de desalento, ao medir as consequências daquela convulsão.
A Natureza terrena saíra das suas mãos imortal; a garantia desse estado era o desconhecimento do Bem e do Mal. O primeiro resultado da destruição da primitiva ordem era o colapso dessa eternidade. Com o fim do estado imortal da Natureza, vinha o sofrimento da matéria, a dor, a doença, a noite, a escassez, a morte, o esforço, quer dizer, o Mal. Sem remédio, a Natureza, que fora a esperança do Criador, decaía de plano, perdendo a sua primitiva glória. Não que a Terra tivesse caído definitivamente nas mãos da rebelião diabólica, mas volvera-se pelo menos em novo e perigoso palco de investidas revoltosas. A Terra, que fora criada como intervalo de repouso, via-se de repente motivo duma inesperada disputa. No fundo, o confronto do plano anterior, próprio aos anjos, alastrava à Natureza terrena, fazendo dela um tabuleiro decisivo das forças em confronto. A Terra passava, no círculo geral do universo criado, de breve desvio quase irrelevante, tapada onde Deus vinha saborear a ignorância do Bem e do Mal, a região do meio, verdadeiro tampão entre os que habitavam as regiões luminosas e permaneciam fiéis ao Criador e os sublevados que haviam decidido tudo submergir em negra treva.
Todo este processo significara uma carregada derrota para os planos subtis onde viviam os anjos da Luz. A Terra, que fora criada muito próxima desses planos, estava agora meio chamuscada pelas labaredas da rebelião. Perdera o seu estado de jardim estável e glorioso e ganhara um semblante de fuligem cinérea, com céus enegrecidos por tempestades de fumos narcóticos e malévolos. Relâmpagos assustadores fendiam de há muito a escuridão em que a Terra mergulhara depois da intromissão dos anjos revoltosos. Ao optarem pelo conhecimento do Bem e do Mal, o homem e a mulher haviam perdido a imortalidade da sua primitiva criação e haviam outrossim ganho a liberdade de optar, quase sempre sem disso haverem a consciência, entre as duas forças em confronto». In António Cândido Franco, Vida Ignorada de Leonor Teles, Edições Ésquilo, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-8092-59-5.

Cortesia de Ésquilo/JDACT