sexta-feira, 19 de junho de 2015

Teatro. A Promessa. Bernardo Santareno. «Maria do Mar (que prepara o café): vossemecê está em sua casa, meu pai… (num rompante) em sua casa, com o seu filho José e o seu filho Jesus! Aqui, a estrangeira sou eu... (a bater no peito com ambas as mãos) eu, eu é que sou a estranha! Não tenha medo, meu pai: está em sua casa…»

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A Promessa
«Cozinha em casa de Salvador. Lareira grande, baixa, praticável. Ambiente que resuma os usos e os credos dos pescadores portugueses: não apenas os duma certa região (Nazaré ou Póvoa de Varzim, por exemplo), mas os da costa em geral. É madrugada. Ouve-se, lá fora, um mar bravíssimo e o vento rijo. Ao subir o pano, Salvador, só em cena, acocorado em cima da lareira, ateia o fogo com uma nova, acha, soprando. Semiobscuridade no resto do compartimento.

Maria do Mar (entra, vindo do quarto onde dorme com José: ainda desgrenhada, o cabelo comprido caído pelas costas, traz uma das mãos uma candeia acesa, erguida ao nível do rosto. Descalça, saia negra muito rodada, blusa vermelha): Bom dia, pai!
Salvador (enchendo o cachimbo; veste camisola de grossa lã preta): Bom dia, rapariga!
Maria do Mar (que vai pendurar a candeia num prego, para tal existente na coluna da lareira): Maldito tempo!... (Agressiva.) Vossemecê dormiu aí?!
Salvador: Levantei-me ainda não eram quatro horas: não podia com o frio…
Maria do Mar (alisando os cabelos com um pente): O pior é a lenha... Muito friorento vossemecê me saiu, pai! Até na cama tem frio...
Salvador (que fixa o fogo): Estou velho, rapariga...
Maria do Mar (troça crispada): Não é da idade, pai: isso..., é do sangue!
Salvador: Estou velho... e só.
Maria do Mar (pára, de súbito, atirando com o pente para cima duma mesa): Mais vale só, que-mal acompanhado!
Salvador (silêncio; fixando Maria do Mar): Explica-te, Maria do Mar!...
Maria do Mar (brusca, atando a saia na cinta): Ora!... Que tempo mais malvado!...
Salvador: Queres tu dizer com isso, que a minha Rosária, Deus a tenha em descanso!, não era boa companheira?...
Maria do Mar (cantarolando): Ai, la-ri-ló-lé... Vossemocê não está bom, meu pai? Põe mau sentido em tudo quanto eu digo!...
Salvador: Como tu estás mudada, Maria do Mar! (Silêncio) E como tu me tratas!... Tens tazão: eu, agora, não passo dum peso morto...
Maria do Mar (que prepara o café): Vossemecê está em sua casa, meu pai… (num rompante) em sua casa, com o seu filho José e o seu filho Jesus! Aqui, a estrangeira sou eu... (a bater no peito com ambas as mãos) eu, eu é que sou a estranha! Não tenha medo, meu pai: está em sua casa, com a sua gente... Não, não pesa a ninguém!
Salvador: Mas o pão que eu como é teu! Eu já não tenho braços..., nem pernas... (Mostra um par de muletas) Ai, Maria do Mar, isto é muito triste!...
Maria do Mar (sempre a trabalhar): O pão que vossemecê come é do seu filho José: ele é quem o ganha...
Salvador: Dele ou teu, não é o mesmo? Ele não é o teu homem?!
Maria do Mar (a bater com a, cafeteira, nervosa): Meu homem?! (Riso frenético) Deixem-me rir! (A cantar) Ai, la-ri-ló-lé... O meu homem!
Salvador (com estranheza): Estás doida rapariga? Que diabo tens tu?!
Maria do Mar (angustiada, quase a chorar): Maldito tempo! (Vai abrir a janela: claridade do exterior, mar e vento mais audíveis) Ah, mar! Ah, filho dum cão! Que o demónio te beba, malvado! (Fecha violentamente a janela) E há cinco dias que isto dura!... (num ímpeto, girando em redor de si mesma) Estou farta do mar, entende? Farta, até aqui! (Indica os cabelos) Mar, mar, mar... O mundo não é só o mar, meu pai!
Salvador: Para a gente é, Maria do Mar: se tu, rapariga, até no nome lhe pertences!

In Bernardo Santareno, Obras Completas, A Promessa, Editorial Caminho, Lisboa, 1984, Depósito legal nº 6563.

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