domingo, 21 de junho de 2015

Teatro. A Promessa. Bernardo Santareno. «E que maior castigo? Ainda maior, meu pai?! (Batendo com ambas as mãos na face) Há para aí alguma mais desgraçada do que eu? Maria do Mar... Maria do Diabo, Maria do Diabo é que eu sou!»

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A Promessa
«(…)
Maria do Mar: É verdade, meu pai: Deus marcou-me! Foi logo desde a nascença... Marcadinha, meu pai, logo marcadinha! (Mutação rápida) Mas então o seu filho hoje não se levanta? (À porta do quarto: irritada) Zé!... Ah, Z´!... São mais que horas: levanta-te, homem!
Salvador: Deixa-o, mulher, deixa-o dormir: ele hoje ainda não pode ir ao mar. Talvez amanhã… Talvez o tempo mude hoje, durante o dia...
Maria do Mar: Ora, ora, meu pai! Vossemecê cuida que o Zé tem pena, por não se poder fazer ao mar? Bem se importa ele com o mar!
Salvador: Não se importa?! Com que se há-de importar um pescador, Maria do Mar? Tu sempre tens coisas...
Maria do Mar (ruim): E vossemecê gosta muito do mar, não é assim? Não haja dúvidas que tem razões para isso! Veja o que ele fez das suas pernas... O mar, o mar!...
Salvador (silêncio. Depois, triste): Tu, dantes, eras bondosa e alegre. Agora, andas sempre triste..., e já não és tão boa: que tens tu, minha filha?!
Maria do Mar: Triste, eu?! Ora vejam lá!... Então conhece alguém, na borda de água, mais alegre que a Maria do Mar? Quem há para aí capaz de se rir como eu? Quem, meu pai?! (Gargalhadas estridentes, nervosas) Imaginem, eu, triste! Que razões, sim, que motivos teria eu para andar triste, meu pai? Como e bebo, tenho saúde, durmo bem... Só se fosse mal agradecida a Deus! (Mutação: inquieta, trocista) Vossemecê esquece-se de que o seu filho é agora o sacristão cá da terra? (Olha o relógio, da parede) São seis horas..., está quase a tocar para a missa. (Chamando) Zé! Levanta-te, Zé! Olha a missa! (Para Salvador) Olhe, pai, disto é que ele gosta: da igreja, dos círios, da opa encarnada e das ladainhas..., a isto é que o seu filho quer bem. Bem quer ele saber do mar!... Ora, o mar, o mar!... (Mutação) Cá por mim, tenho-lhe raiva... Maldito mar! Por causa dele é que eu… (A voz embargada pelo choro)
Salvador: Cala-te, mulher, não te castigue Deus!
Maria do Mar (em fúria): E que maior castigo? Ainda maior, meu pai?! (Batendo com ambas as mãos na face) Há para aí alguma mais desgraçada do que eu? Maria do Mar... Maria do Diabo, Maria do Diabo é que eu sou! (Mutação) E veja se acaba de fumar, pai: daqui a pouco, ninguém pode respirar nesta casa! (Tosse. Empurrando a mesa e as cadeiras para o meio da sala) Para quê? Para que me hei-de eu esfalfar a arrumar esta casa? Vem vossemecê e espalha tabaco e cinzas por toda a parte; o Jesus, coitado, tropeça aqui, tropeça acolá..., e põe cada coisa para o seu lado; quanto ao Zé, pode bem o esterco chegar-lhe ao nariz, que ele não dá por nada!... Homens, homens, homens! Nesta casa só há, homens... (Está o varrer o chão; pára de repente; depois, expressão tracista) Homens?! Ai que ricos! (Cantarolando) Ai, la-ri-ló-lé...
Salvador: Ah, Maria do Mar! Olha que eu, muitas vezes, até penso que tu me tens ódio, rapariga!
Maria do Mar (crispada): E porquê? Por que razão havia eu de odiá-lo, senhor?!
Salvador: Que eu saiba, nunca te fiz mal...
Maria do mar (num grito): Fez!
Salvador: Eu?! (Pausa. Triste).'1 Ah, já sei..., é por causa da promessa, não é?
Maria do Mar (arrependida): Ora, doidices! Vossemecê faz-me dizer coisas sem jeito, meu pai: que culpa tem vossemecê disso, dessa promessa?... (Ouve-se, mais forte, o vento) Ai, que maldito tempo!...
Salvador (silêncio): Vai falar com o padre, Maria do Mar: promessas assim não devem fazer-se. Mas se, num momento de aflição, um pobre mortal as faz..., deve mudá-las. Vai ter com o senhor prior, Maria do Mar! Faz o que eu te digo, rapariga... Verás como, depois, tudo mudará nesta casa: vocês não são santos!...
Maria do Mar (desdém e raiva): É. Ele é. O seu filho quer ser santo!»

In Bernardo Santareno, Obras Completas, A Promessa, Editorial Caminho, Lisboa, 1984, Depósito legal nº 6563.

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