sexta-feira, 19 de junho de 2015

O Livro dos Perfumes Perdidos. M. J. Rose. «Avançou pelo corredor, profusamente decorado, até um santuário interior e inspirou com força, tentando extrair mais informações do antiquíssimo ar. Frustrado, expirou e, sem querer, apagou a vela»

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Alexandria. Egipto. 1799
«(…) Pronto, declarou Saurent ao mesmo tempo que entregava as ferramentas a um dos lacaios egípcios e sacudia as mãos. Général? Napoleão avançou até ao portal e tentou rodar o brilhante aro de bronze. Tossiu. Tentou com mais força. O general era um homem magro, quase emaciado, e L'Étoile fez figas para que ele conseguisse accionar o mecanismo. Por fim, um sonoro ranger ecoou pela cripta e a porta abriu-se. Saurent e L'Étoile juntaram-se ao general na soleira da porta, os três estendendo as respectivas velas à escuridão para alumiar a câmara interior e, sob a tremeluzente e pálida luz amarelada, materializou-se diante dos seus olhos um corredor repleto de tesouros. Mas não seriam as elaboradas gravuras nas paredes do corredor, nem os vasos de alabastro, nem as esculturas ricamente talhadas e decoradas, tão-pouco as arcas de madeira carregadas de tesouros que L'Étoile recordaria para o resto da vida, e sim o ar doce e quente que fluiu ao seu encontro. O perfumista sentiu o odor a morte e a história. Ténues aromas de flores secas, de frutos e ervas aromáticas, e de madeiras. Com a maioria estava familiarizado, mas sentiu outras notas também. Mais subtis. Menos familiares. Apenas esboços de aromas, na verdade, que o inebriaram e atraíram, tantalizantes e suplicantes como um bonito sonho prestes a desvanecer-se para sempre. Ignorou o aviso de Saurent, segundo o qual estava a penetrar em território desconhecido, que poderia haver armadilhas, serpentes escondidas, bem como as admonições de Abu acerca de espíritos emboscados, ainda mais perigosos que as serpentes. Seguindo o seu olfato, e munido apenas de uma vela, L'Étoile embrenhou-se na escuridão, ultrapassando o general e toda a gente, sedento de uma dose mais concentrada do misterioso perfume.
Avançou pelo corredor, profusamente decorado, até um santuário interior e inspirou com força, tentando extrair mais informações do antiquíssimo ar. Frustrado, expirou e, sem querer, apagou a vela. Talvez tenha sido de tanto inspirar, ou talvez da penetrante escuridão. Talvez tenha sido o ar bafiento que o deixou tão tonto. Não importava. Ao mesmo tempo que combatia a vertigem, a sua percepção do aroma tornou-se mais forte, mais íntima. Finalmente, começou a identificar ingredientes específicos. Olíbano e mirra, lótus azul e óleo de amêndoa, todos componentes comuns dos incensos e fragrâncias egípcios. Contudo, havia mais qualquer coisa, algo esquivo e fora do alcance dele, mas apenas por pouco. Sozinho, imerso na escuridão, estava tão concentrado e absorto que nem escutou os passos do resto do grupo, que seguira no seu encalço. Que cheiro é este?
A voz sobressaltou o perfumista. Virou-se para Napoleão, que acabara de penetrar naquela câmara. Um perfume que não é cheirado há séculos, sussurrou L'Étoile. Ao mesmo tempo que os outros chegavam, Abu começou a explicar que se encontravam na câmara funerária e apontou para os murais de cores vivas. Um deles mostrava o defunto a vestir uma enorme estátua de um homem com cabeça de chacal, colocando comida aos pés do homem-chacal. Ligeiramente atrás, uma mulher esguia e bonita com um vestido transparente segurava uma bandeja cheia de garrafas. Na cena seguinte, a mulher acendia um incensório, o fumo tornando-se visível. No painel a seguir, o chacal encontrava-se no meio de vasos, prensas e alambiques, objectos que L'Étoile reconhecia da oficina de perfumes do seu pai em Paris.
L'Étoile sabia o quanto a fragrância era importante para os antigos egípcios, mas nunca antes vira tanta imagética relacionada com o fabrico ou utilização de um aroma. Quem é o homem que está aqui sepultado?, perguntou Napoleão a Abu. Já descobriu? Ainda não, general, respondeu Abu. Mas devemos encontrar mais pistas ali. Abu apontou para o centro da câmara. O estilizado sarcófago de granito preto tinha cinco vezes o tamanho de um homem comum. A sua superfície polida exibia cartelas esculpidas e um retrato embutido a turquesa e lápis-lazúli de um homem bonito e de aspecto felino com lótus azuis em redor da cabeça. L'Étoile reconheceu-o. Era Nefertum, filho de Iset. O deus dos perfumes. De repente, as cenas representadas nos murais, o motivo do lótus azul, os incensórios em todos os cantos da câmara fizeram sentido para L'Étoile. Aquele era o túmulo de um perfumista do antigo Egipto. E, a julgar pela sua majestosidade, o sacerdote fora um homem venerado.
Saurent vociferou um par de ordens à sua equipa de trabalhadores e, após uma breve contenda, os jovens conseguiram erguer a tampa de pedra do sarcófago. Aninhado no interior encontrava-se um ataúde de madeira decorado com gravuras das mesmas duas pessoas representadas nos murais. A tampa deste caixão foi extraída com a maior facilidade. Lá dentro estava uma enorme múmia Com uma forma estranha, tinha o comprimento normal, mas apresentava mais do dobro da largura habitual, enegrecida com asfalto do mar Morto. Em vez de apenas uma, exibia duas elaboradas máscaras de ouro. Ambas estavam coroadas por toucados de turquesa e lápis-lazúli e tinham peitorais de cornalina, ouro e ametista. A única diferença entre elas era que a da direita era masculina e a da esquerda feminina». In M. J. Rose, O Livro dos Perfumes Perdidos, tradução de Eugénia Antunes, Clube do Autor, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-724-039-3.

Cortesia de CAutor/JDACT