sexta-feira, 5 de junho de 2015

Ensaios. A História de Portugal. Vitorino Magalhães Godinho. «Uma das características deste complexo é que põe em relação economias monetárias, como a dos Países Baixos, Portugal, Pérsia e Índia, com economias pré-monetárias como as africanas e as situadas a leste do meridiano que passa a meio do golfo de Bengala»

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A evolução dos complexos histórico-geográficos
«(…) Mas para determinar a estrutura seria necessário estabelecer as proporções. Conhecemo-las num caso; Alenquer em fins do século XV (…). Desde meados do século XIV, o comércio nacional enfrentava a rude concorrência dos estrangeiros mas mantinha-se corn firmeza: entre 1385 e 1456, num total de 46 navios apresados ou roubados por piratas ou em terra, dos que faziam o tráfego entre Portugal dum lado e a Inglaterra e a Flandres de outro, 83% pertencem a portugueses, 15% a estrangeiros, 2% são de senhorio misto; conhecemos a propriedade da carga em 20 casos: 55% é de portugueses, 20% de estrangeiros, 25% mista. Muitos dos nobres e cavaleiros e até fidalgos armam navios, arrematam estancos, investem em resgates, bem como em canaviais: vai surgindo o cavaleiro-mercador, enquanto também se constela o senhorio capitalista. O Estado alicerça-se agora nos impostos gerais de compra e venda, as sisas, logo no comércio interno, e crescentemente nas rendas aduaneiras, no comércio marítimo. Geograficamente, este complexo abarca Portugal, os arquipélagos, o Noroeste africano atlântico. Tal expansão processa-se em torno do ouro sudanês, caravelas contra caravelas, do dinamismo açucareiro que leva às plantações e engenhos, da necessidade de controlar mercados de cereais ou de criar, do apresamento ou resgate de cativos canários, azenegues e negros para mão-de-obra, da busca de cores para a tinturaria, da multiplicação de gado (indústria e exportação de coiros).
Em fins do século XV, numa economia em expansão e em que o elemento monetário é cada vez mais importante, começa a estruturar-se um novo complexo histórico-geográfico em que o factor dinamicamente decisivo é o trato das especiarias e a rota do Cabo. A sua configuração caracteriza-se pela extrema dispersão (a ritmo acelerado) que vai de Antuérpia à China, do Mediterrâneo central ao Brasil e à Terra Nova. Articula-se em volta do ouro da Mina (700 kg), do açúcar da Madeira e São Tomé, do pau-brasil de Vera Cruz (10 000 quintais), dos bacalhaus da Terra Nova, dos escravos de Guiné, do pão e do pastel dos Açores, da coirama e sal das ilhas de Cabo Verde, do ouro do Monomotapa e de Samatra (4 toneladas de ouro oriental), da pimenta e gengibre do Malabar, da canela de Ceilão, da noz e da maça de Banda, do cravo das Molucas, dos larins persas, da seda e porcelanas chinesas, da prata e cobre da Europa central e oriental, dos grãos do Báltico. As principais artérias por onde corre a circulação são a de Lisboa a Antuérpia, levando as especiarias, o açúcar, trazendo a prata, o cobre, os cereais, os panos; de Lisboa à Mina, para retorno do metal amarelo; de Lisboa a Cochim, levando a prata e o cobre, o coral, o vermelhão, o cinábrio, o chumbo, os panos, trazendo uns 50 000 quintais de especiarias; de Moçambique à Índia; de Cochim a Malaca; de Malaca a Banda e às Molucas; de Cochim a Ormuz, reanirnando o tráfego caravaneiro de Bassorah à Síria, esta e a rota do Cabo em concorrência com a do mar Roxo. Num século a produção de especiarias asiáticas mais do que duplica. Uma das características deste complexo é que põe em relação economias monetárias, como a dos Países Baixos, Portugal, Pérsia e Índia, com economias pré-monetárias como as africanas e as situadas a leste do meridiano que passa a meio do golfo de Bengala. No reino a população aumenta apesar da emigração, olivais e vinhas começam a propagar-se para satisfazer a nova procura, as indústrias do biscoito e da louça, dos tecidos também se desenvolvem pela mesma razão. Se o capital estrangeiro intervém no comércio ultramarino, não é, longe disso, o seu factor preponderante. Entre os que têm negócios com a Casa da Moeda no século XVI conta-se apenas l/6 de estrangeiros quanto ao ouro e 1/3 quanto à prata, não sendo dos negócios de maior vulto. O Estado e a nobreza mercantilizam-se, sem todavia adquirirem a mentalidade e o estilo de vida capitaiistas, burgueses, obstando-se assim a que surjam as sociedades por acções. Mas porque assente nos estancos comerciais e nos direitos alfandegários, o Estado desenvolve a burocracia e tende a tornar-se absoluto. Uma boa parte do trato marítimo está todavia em mãos particulares e mesmo burguesas: de 65 moradores de Guimarães que de 1513 a 1530 sofreram roubos de franceses no mar contam-se 34 mercadores, 14 mesteirais, 2 tabeliães e advogados, 1 marinheiro, 6 lavradores, 3 religiosos e só 5 cavaleiros e escudeiros. Precisemos a estrutura económica com os valores globais de alguns comércios e produções que informam o complexo português cerca de 1515.
Ou seja, 1 855 000 para o l.º grupo e 4 300 000 para o 2.º. As rendas eclesiásticas montam em 1537 a 1 milhão de cruzados, os ingressos régios a 650 000 ou mesmo mais (em 1534), as rendas da nobreza devem-se aproximar das do clero. Socialmente, ao findar o século, a Península (não entrando Portugal) divide-se nuns 312 000 fidalgos e mercadores, 350 000 artífices e trabalhadores manuais, 338 000 lavradores, 58 000 marinheiros e pescadores e 47 000 servidores e ociosos; é natural que esta imagem corresponda também ao caso português. Note-se que fidalgos e mercadores aparecem juntos porque, como diz o próprio texto, a maior parte dos mercadores são fidalgos. A população portuguesa metropolitana anda por 1 400 000, Lisboa tem agoru 85 000 (1528) e 100 000 habitantes (1551), o Porto uns 14 000». In Vitorino Magalhães Godinho, Ensaios, Sobre a História de Portugal, Livraria Sá da Costa, Lisboa, 1ª Edição, 1968.

Cortesia LSdaCosta/JDACT