domingo, 7 de junho de 2015

Dúvidas e Certezas na História dos Descobrimentos Portugueses. Luís de Albuquerque. «Todavia, no caso em que o homem de ciência, obcecado pelas suas ideias a ‘priori’, falseia os resultados, ou supõe lícito interpretá-los abusivamente de modo favorável ao seu ponto de vista…»

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Sobre o Descobrimento da América. Uma pedra e um mapa I
Começarei pela pedra com inscrições, que é uma fantasia relativamente recente sobre o descobrimento do nordeste da América do Norte, com honras de museu, que merecia em termos diferentes, e também com honras de réplicas, que de modo algum merece com o significado que lhe dão; iremos ver porquê. O rochedo, matéria de acesa e longa polémica, encontrava-se numa das margens do rio Tauton, mas de facto foi removido há anos para o Dighton Rock Museum, de mistura com objectos associados com os Descobrimentos portugueses, em parte ofertas do Museu da Marinha de Lisboa e em parte dádivas da Fundação Calouste Gulbenkian; isto diz-nos o médico português emigrado naquela área dos Estados Unidos, Manuel Luciano Silva, que tem sido um estrénuo defensor da teoria de a pedra ser um testemunho irrecusável da presença naquelas terras americanas, durante pelo menos quase uma década, do infeliz navegador Miguel Corte Real. Com persistência e convicção notáveis, mas também dignas de causa com melhores raízes, tem publicado folheto após folheto, escrito carta sobre carta a sucessivos governantes do nosso país, pronunciando palestra atrás de palestra em rádios lusófilas do estado americano em que se radicou (e em que vivem inúmeros portugueses) e indo até ao limite de romper relações pessoais com quem põe sérias dúvidas em decifrar no pedregulho o que ele lá teima em ler e ver. Como se divergências de leituras epigráficas tivessem alguma coisa a ver com o possível convívio amável entre os que vivem a mesma época e falam a mesma língua materna.
E, no entanto, a celebridade da pedra de Dighton não começou por diligências deste médico beirão; iniciou-se até uns dez anos antes de ele ter nascido. De facto, Edmund Delabarre, professor da Brown University, e por sinal professor de Psicologia, interessado nas inscrições gravadas em pedras da região, publicou em 1916 um primeiro artigo sobre o rochedo do rio Tauton e o emaranhado das inscrições que nele se desenharam; outros artigos seus se seguiram, e a teoria, sobre a pedra acabou por ser exposta num volumoso livro (360 páginas) intitulado The Dighton Rock, que saiu a lume em 1928 na cidade de Nova Iorque. Delabarre teve a princípio naturais perplexidades perante os traços entrecruzados e sobrepostos do rochedo; e quem quer que o tenha visto (vi-o ainda junto do rio Tauton há muitos anos) logo compreende as dúvidas iniciais do professor americano; dúvidas que também então me assaltaram, e, o que é mais sério, igualmente intrigaram peritos em epigrafia; não o sou, nem o era Delabalre, nem o é, que eu saiba, Manuel Luciano Silva.
Perante essas dificuldades lembrou-se Delabarre de fotografar a pedra iluminada artificialmente; penso que com diversas luzes, e estou certo que de vários ângulos de incidência; entre as muitas fotografias feitas, algumas foram colhidas quando no traçado fez incidir uma luz rasante. Isto foi realizado em meados de 1918, e marcou o ponto de partida de uma contenda histórica, que devia estar encerrada há muito tempo, mas continua viva, e agora com pompa, graças à teimosia daquele nosso compatriota. Metido em casa com as suas fotografias, Edmund Delabarre começou a procurar nelas a confirmação de ideias que o perseguiam, ou seja, a ver no conjunto de traços rectilíneos e curvilíneos das mais variadas formas, que tinha na sua frente, o que desejava ver. Seja-me permitida aqui uma reflexão à margem. Em qualquer ciência, mesmo a mais ligada à parte experimental (e muitas vezes não é bem claro para mim onde se encontra a raia de demarcação entre o teórico e o experimental…), em qualquer ciência, ia dizendo, parte-se naturalmente de hipóteses, que análises insistentes e repetidos ensaios confirmam ou desmentem; e os ensaios frustrados serão decerto em muito maior número do que os resultados espantosos (haja em vista o extraordinário número de experiências inconsequentes sobre o cancro!), sem esquecer que os positivos muitas vezes se devem a um acaso feliz (estou a lembrar-me, é claro, de Fleming e da sua descoberta da penicilina!). Se um cientista falha, volta ao princípio e retoma as suas experiências noutro sentido, tendo de ser corajoso e repetir o caminho tantas vezes quantas as necessárias para chegar a algum resultado, ou morrer sem lamentavelmente ter contribuído com qualquer novidade, por ínfima que seja, para a ciência por si cultivada. Nenhum mal vem daí ao mundo, para além do lamentável tempo perdido pelo cientista fracassado.
Todavia, no caso em que o homem de ciência, obcecado pelas suas ideias a priori, falseia os resultados, ou supõe lícito interpretá-los abusivamente de modo favorável ao seu ponto de vista (e neste caso nem sempre haverá desonestidade…), então criam-se problemas muito graves que chegam a ter repercussões de ordem social e de ordem política (claro: estamos todos a lembrar-nos de Lissenko!) Em História também assim é, evidentemente: perante um conjunto de acontecimentos ou até de um simples facto isolado (no caso vertente, a descoberta da pedra de Dighton, coberta de sinais variados), é lícito colocar hipóteses, mas é ilícito forçar tudo e usar de batota para que elas se confirmem, por muito que tais hipotéticas conclusões forçadas sejam gratas à nossa perspicácia e à nossa argúcia». In Luís de Albuquerque, Dúvidas e Certezas na História dos Descobrimentos Portugueses, colecção Documenta Histórica, Vega, Lisboa, 1990, ISBN-972-699-258-3.

Cortesia de Vega/JDACT