quarta-feira, 10 de junho de 2015

Confissões de Uma Freira Pagã. Romance histórico. Kate Horsley. «Um envolvente histórico baseado na descoberta de um manuscrito do século V que retrata na primeira pessoa a experiência de Gwynneve, uma freira irlandesa colocada entre dois mundos»

jdact

Declaração
«(…) Perguntei à irmã Luirrenn, a nossa anciã, se podia transcrever a história de Noé para aprender as lições da chuva incessante antes de as ter de viver. Eu disse-lhe que receava afogar-me na poça que se formava à minha porta. A irmã Luirrenn deu uma olhadela ao meu trabalho, notando que não tinha qualquer texto aberto de onde copiar. Ela perguntou se eu já tinha acabado as transcrições das lições de Santo Agostinho. Ela própria costumava confessar que antipatizava com o seu discurso castrante, mas ela agora assumia o papel de mais velha, ainda mais exacerbado desde que, sem a sua irmã, sofria a concorrência do abade, um homem que chegara na época passada com os seus monges para ocupar o nosso convento. Eu digo que ele está a tentar geri-lo, mas a Luirrenn diz: Ele é um irmão instruído que está aqui para compartilhar as bênçãos de Brígida. Mas, desde a chegada dele, a crítica da irmã Luirrenn ao meu trabalho tem sido arguta, e eu amo-a tanto que não quero arreliá-la. Os seus olhos dançam dentro das rugas da sua cara envelhecida, mesmo quando ela faz uma repreensão. Ela disse: É uma benção que o abade tenha demasiados afazeres para olhar para as ranhuras de uma freira envelhecida e não notável. Ela fez-me uma festa na cara, como uma repreensão brincalhona, com os dedos dobrados e inchados que já não fazem transcrições, e disse, Tu és blasfema e desperdiças pergaminho.
Quando a irmã, Luirrenn fala, eu frequentemente ignoro as suas palavras e, em vez disso, ponho-me a especular sobre a aventura que a fez perder os dentes da frente. Muitas das mulheres aqui têm tido camas de espinhos para se deitarem e mágoas misteriosas. Aliviamo-nos, às vezes, ao agarrarmo-nos umas às outras nas noites escuras, ou tirando pão e queijo e culpando o povo de Bebo. A Luirrenn, confesso, é às vezes gozada por uma irmã que escurece os seus próprios dentes para imitar o vácuo da boca da anciã. A irmã Luirrenn esconde a boca com a mão, sobretudo desde que chegou o abade com os seus monges. E a chegada de uma criança recém-nascida danificou ainda mais o seu sorriso. No segundo dia de chuva, uma mulher cinzenta chegou às portas da capela com uma criança recém-nascida e moribunda. Ela queria deixá-la como sacrifício à Santa Brígida. Existe muita confusão entre os leigos sobre os novos rituais e o seu significado. Quando eu lhe disse que aqui não fazíamos sacrifícios, ela deu-me a criança e disse: Eu não consigo ver ninguém morrer. Ela repetiu isto três vezes, para que fosse ouvido em todos os mundos. Depois foi-se embora, escondendo a cara com o cabelo. Desde então, dei a criança ao pastor de cabras para ver se ela seria amamentada por uma das cabras mães. A criança, que é um rapaz, estará sem dúvida morta amanhã ao amanhecer e foi por isso que eu não estive muito tempo a segurá-la contra o meu coração. Na confissão de culpas, amanhã, eu direi que sou uma cobarde. Mas a plenitude do meu amor é, agora, resolutamente só dada ao Nosso Senhor Jesus Cristo, porque aqueles a quem eu amei e que eram mortais, deixaram-me de luto, com o coração a sangrar. Também direi na confissão de culpas que me apetecia dar duas bofetadas à irmã Aillenn, cujos dramas derivados da sua delicadeza cheia de ressentimentos me enraivecem, porque nunca me foi permitido a mim ser fraca, apesar de ser pequena. Não existe nenhuma luz redonda à volta da minha cabeça. Deus me perdoe, mas às vezes a raiva dá-me gozo. Nem tão pouco tenho carácter para mártir porque adoro sítios confortáveis, onde a chuva não é fria e as refeições são abundantes.
Acerca da história da minha família: a minha mãe, Murrynn, casou com o meu pai, Cleb, porque ela tinha terminado com outro marido, que tremeu quando ela se tornou selvagem sem nunca lhe ter dado filhos. Ele ainda vivia na túath e era respeitado pela sua habilidade de curtir e cortar pele de porco. Eu simpatizava com ele e frequentemente desejava que ele fosse o meu pai, porque sorria com facilidade, com dentes grandes, e trabalhava da luz rosácea à luz pardacenta sem se queixar. A minha mãe falava dele com respeito mas não objectava quando o meu pai o ridicularizava pela sua falta de tino e zombava dela por se ter deitado com ele». In Kate Horsley, Confessions of a Pagan Nun, Confissões de Uma Freira Pagã, Romance Histórico, Ésquilo, Lisboa, 2002, ISBN 972-8605-18-8.

Cortesia Ésquilo/JDACT