segunda-feira, 22 de junho de 2015

Cartas ao cardeal. Fátima. Tomaz Fonseca. «As palavras veementes que da minha boca se soltaram, essas vão para os caixeiros-viajantes do dogma cristão. O clero português anseia, como nós, tempos melhores, sem miséria, sem ódio e sem tiranos»

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«(…) É tão grande a confiança que nele ponho, que se me não dava de apostar que, embora não vote no nosso candidato, a ninguém ousará recomendar o contrário, E, se não, experimente. Procure-o no tribunal da penitência, onde não recusará ouvi-lo, e, invocando escrúpulos de consciência, formule-lhe o quesito: Vim aqui, meu padre, porque desejo não errar, votando em cidadão menos digno. Qual é, pois, o nome da pessoa em que vota? Creio que a minha fé me não ilude, e por isso apostaria novamente em como a fala dele não irá fora disto: o meu candidato é Deus, para o espiritual; mas como estou ligado ao Mundo pelo rebanho que o mesmo Deus me confiou, votarei também no outro, que, embora mortal e pecador, reunirá, decerto, virtudes morais e cívicas em grau suficiente para bem conduzir a nau do Estado. Portanto, indague como eu, e vote conforme a sua consciência. Noutra carta, apontarei as razões que tenho para afirmar que o clero português votará largamente no candidato nacional, ou seja, o da Oposição.
O Autor expõe as razões que tinha em confiar que, nas eleições para a presidência da República, o clero secular votaria largamente no candidato da oposição ao Estado Novo. Meu caro Amigo: Antes de mais nada, desejo recordar, para que me não julguem incoerente com um passado que vem já de muito longe, as seguintes palavras que pronunciei no Senado, em sessão de 29 de Março de 1917, acerca do regresso das congregações religiosas a Portugal, que lhes ficou devendo, além de séculos de miséria e de opressão, o grande atraso cultural que a história registou em páginas que não esquecem mais; não veja o Senado, nas palavras que vou pronunciar, qualquer fórmula de ataque ao sentimento religioso, ao ideal místico daqueles que sinceramente creem e confiam na intervenção de um Deus, que é, para muita gente simples, essa esperança falaz que os norteia na vida e os embala na morte… Não venho ferir crenças, mas atacar empresas… Falo daqueles que têm Deus como instrumento do seu ódio; que, aproveitando a religião como gazua, exercem o sacerdócio, não para salvar as almas, mas forçarem a espórtula, sua ambição suprema… As palavras veementes que da minha boca se soltaram, essas vão para os caixeiros-viajantes do dogma cristão, os arlequins que andam de templo em templo, vendendo a peso de ouro o corpo do seu Deus, ou traspassando a retalho a túnica que o cobriu.
Assim apresentado às gerações que de mim nunca ouviram falar, passo ao tema que me propus agora desenvolver e que em três pontos se desdobra: 1.º O clero português não está com a actual situação política; 2.º O clero sofre com o povo, e, por isso, 3.º O clero português anseia, como nós, tempos melhores, sem miséria, sem ódio e sem tiranos». In Tomaz Fonseca, Fátima, (cartas ao cardeal Cerejeira), Editora Germinal, Rio de Janeiro, 1955, Arquivo Nacional da Torre do Tombo.

Cortesia de EGerminal/JDACT