quarta-feira, 3 de junho de 2015

A Viagem do Elefante. José Saramago. «A carta ficou perfeita tanto de letra como de razões, não omitindo sequer a possibilidade teórica, diplomaticamente expressa, de que o presente pudesse não ser do agrado do arquiduque, o qual teria, porém, todas as dificuldades do mundo»

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«(…) Um estirão, disse a rainha, Um estirão, assentiu o rei gravemente, e acrescentou, Amanhã escreverei ao primo maximiliano, se ele aceitar haverá que combinar datas e fazer alguns acertos, por exemplo, quando tenciona ele partir para viena, de quantos dias irá precisar salomão para chegar de lisboa a valladolid, daí para diante já não será connosco, lavamos as mãos, Sim, lavamos as mãos, disse a rainha, mas, lá no íntimo profundo, que é onde se digladiam as contradições do ser, sentiu uma súbita dor por deixar ir o salomão sozinho para tão distantes terras e tão estranhas gentes. No dia seguinte, manhãzinha cedo, o rei mandou vir o secretário pêro de alcâçova carneiro e ditou-lhe uma carta que não lhe saiu bem à primeira, nem à segunda, nem à terceira, e que teve de ser confiada por inteiro à habilidade retórica e ao experimentado conhecimento da pragmática e das fórmulas epistolares usadas entre soberanos que exornava o competente funcionário, o qual na melhor das escolas possíveis havia aprendido, a de seu próprio pai, antónio carneiro, de quem, por morte, herdara o cargo. A carta ficou perfeita tanto de letra como de razões, não omitindo sequer a possibilidade teórica, diplomaticamente expressa, de que o presente pudesse não ser do agrado do arquiduque, o qual teria, porém, todas as dificuldades do mundo em responder com uma negativa, pois o rei de portugal afirmava, numa passagem estratégica da carta, que em todo o seu reino não possuía nada de mais valioso que o elefante salomão, quer pelo sentimento unitário da criação divina que liga e aparenta todas as espécies umas às outras, há mesmo quem diga que o homem foi feito com as sobras do elefante, quer pelos valores simbólico, intrínseco e mundano do animal. Fechada e selada a carta, o rei deu ordem para que se apresentasse o estribeiro-mor, fidalgo da sua maior confiança, a quem resumiu a missiva, depois do que lhe ordenou que escolhesse uma escolta digna da sua qualidade, mas, sobretudo, à altura da responsabilidade da missão de que ia incumbido. O fidalgo beijou a mão ao rei, que lhe disse, com a solenidade de um oráculo, estas sibilinas palavras, Que sejais tão rápido como o aquilão e tão seguro como o voo da águia, Sim, meu senhor. Depois, o rei mudou de tom e deu alguns conselhos práticos, Não precisais que vos recorde que deveis mudar de cavalos todas as vezes que sejam necessárias, as postas não estão lá para outra coisa, não é hora de poupar, vou mandar que reforcem as quadras, e, já agora, sendo possível, para ganhar tempo, opino que deveríeis dormir em cima do vosso cavalo enquanto ele for galopando pelos caminhos de castela. O mensageiro não compreendeu o risonho jogo ou preferiu deixar passar, e limitou-se a dizer, As ordens de vossa alteza serão cumpridas ponto por ponto, empenho nisso a minha palavra e a minha vida, e foi-se retirando às arrecuas, repetindo as vénias de três em três passos. É o melhor dos estribeiros-mores, disse o rei. O secretário resolveu calar a adulação que consistiria em dizer que o estribeiro-mor não poderia ser e portar-se doutra maneira, uma vez que havia sido escolhido pessoalmente por sua alteza. Tinha a impressão de ter dito algo semelhante não há muitos dias. Já nessa altura lhe viera à lembrança um conselho do pai, Cuidado, meu filho, uma adulação repetida acabará inevitavelmente por tornar-se insatisfatória, e portanto ferirá como uma ofensa. Posto o que, o secretário, embora por razões diferentes das do estribeiro-mor, preferiu também calar-se. Foi neste breve silêncio que o rei deu voz, finalmente, a um cuidado que lhe havia ocorrido ao despertar, Estive a pensar, acho que deveria ir ver o salomão, Quer vossa alteza que mande chamar a guarda real, perguntou o secretário, Não, dois pajens são mais do que suficientes, um para os recados e o outro para ir saber por que é que o primeiro ainda não voltou, ah, e também o senhor secretário, se me quiser acompanhar, Vossa alteza honra-me muito, por cima dos meus merecimentos, Talvez para que venha a merecer mais e mais, como seu pai, que deus tenha em glória, Beijo as mãos de vossa alteza, com o amor e o respeito com que beijava as dele, Tenho a impressão de que isso é que está muito por cima dos meus merecimentos, disse o rei, sorrindo». In José Saramago, A Viagem do Elefante, Círculo de Leitores, 2008, ISBN 978-972-424-375-7.

Cortesia de CLeitores/JDACT