domingo, 28 de junho de 2015

Viagem pelo Universo Feminino. Cristina Costa Vieira. «Para evitar conflitos com o registo histórico, aquele tende a focar as áreas obscuras da historiografia. Por outras palavras, restringe-se à exploração temática, de uma forma verosímil, dos espaços em branco, das lacunas deixadas no registo…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Não podemos esquecer..., que a história das mulheres, a verdadeira história das mulheres, conta apenas vinte anos. Todo o resto foi filtrado pelos homens, pelos que escreviam ou mandavam escrever». In A Deusa Sentada

O romance histórico como ponto de fuga
«(…) Devemos ter logo em consideração a sua relação privilegiada com o realismo, não no sentido estrito de escola ou período literário, mas numa concepção trans-histórica do termo: the representation of experience in a manner which approximates closely to description of similar experience in non-literary texts of the same culture. Nesse sentido, podemos dizer que, embora o romance histórico tenha nascido sob o signo do romantismo, Scott não é um autor romântico, mas sim realista. Isto porque se esforçou por criar uma ilusão de realidade com base em factos historiográficos a que acrescentava dados fictícios. Para assegurar tal ilusão, Scott e seus imitadores recorreram a estruturas como a narração heterodiegética omnisciente, o estilo indirecto livre, descrições minuciosas e um grande investimento nos diálogos, onde diferentes pontos de vista são colocados frente a frente. São recursos que dinamizam a acção e constroem uma maior verosimilhança e objectividade. Igualmente determinadoras do realismo característico da forma clássica do romance histórico são as estratégias seguidas por estes romancistas para camuflar a juntura que separa o mundo fictício do mundo real e que constituíam, no fundo, constrangimentos a que se sujeitavam. Brian demonstra que o romance histórico clássico respeita factos relativos a pessoas e eventos históricos. Para evitar conflitos com o registo histórico, aquele tende a focar as áreas obscuras da historiografia. Por outras palavras, restringe-se à exploração temática, de uma forma verosímil, dos espaços em branco, das lacunas deixadas no registo histórico oficial. Manzoni concebia o romance histórico como uma humanização do que a História deixara em silêncio, os sentimentos, as vontades e as palavras dos actores da História. Decorrente da preocupação em ser verosímil, avulta o cuidado em evitar incongruências históricas, respeitando os costumes e mentalidades próprios de cada época, ou seja, evitando a todo o custo anacronismos, regras que os romancistas históricos pós-modernos frequentemente subvertem. Segundo Lukacs, apenas um anacronismo se impunha como nécessaire: a expressão clara dos sentimentos e pensamentos das personagens, sem que isso implique modernização da sua psicologia, para maior entendimento das mesmas, e a modernização da linguagem, para inteligibilidade do texto. O retrato psicológico das personagens não era, aliás, uma tarefa muito árdua, pois na convicção ainda iluminista de Scott, as pessoas ao longo das épocas históricas modificam o seu aspecto exterior, enquanto as suas emoções básicas permanecem. Quanto ao resto, o romancista deveria permanecer fiel à historiografia, criando assim um efeito de autenticidade histórica muito mais profundo do que mera descrição verosímil de ambientes, designada por cor local, só por si insuficiente para ressuscitar uma época histórica.
Adoptando o pensamento de Vanoosthuyse, se um romance histórico procura ser mais substantivo ou mais adjectivo, isto é, ou mais romance ou mais histórico, então o século XIX, na sua globalidade, preferiu manietar os caprichos de Calíope em honra de Clio. Na tipologia dos romances históricos de Joseph Turner com base no tratamento do passado histórico, os romances históricos oitocentistas são ficções históricas documentadas, na medida em que a adaptação de material histórico pretende ser fiel, para o que o romancista concorre documentando-se sobre a época que vai retratar. Precisamente para poder fruir de uma maior liberdade criativa, sem cair no perigo da infidelidade histórica, conjugado com o propósito máximo de operar um acordar poético de uma época transata, Scott escolhia para herói das suas intrigas não uma personalidade histórica, que aparecia apenas em momentos-chave da narrativa, mas um herói não referencial ou semi-histórico, geralmente prosaico, representante de correntes sociais e de forças históricas, e não um herói épico e maniqueisticamente concebido. O usufruto de maior liberdade criadora sem consequências para a verdade histórica, terá pesado na opção scottiana pelo medievalismo». In Cristina Costa Vieira, Viagem pelo Universo Feminino de ‘A Esmeralda Partida’ de Fernando Campos: o romance histórico como ponto de fuga, Bolseira do programa Praxis XXI, Dissertação para a obtenção do grau de Mestre em Estudos Portugueses e Brasileiros, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2000.

Cortesia da FLP, UPorto/JDACT

A Esmeralda Partida Fernando Campos. «Não, não é desacato. Também não receio que me ralhes ou castigues. Já não és rei. No discurso do meu pensamento já não haverá de ora em diante dons nem vós. Acabaram-se os foros de fidalguia…»

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«Um dia (...) a rapariga existirá, a mulher existirá. E estas palavras: rapariga, mulher, não significarão somente o contrário de homem mas qualquer coisa de pessoal, valendo por si mesmo; não apenas um complemento, mas uma forma completa da vida: a mulher na sua verdadeira humanidade». In Cartas a um Poeta

O cofre secreto
«Já a noite fechou. Mais curtos os dias no Outubro avançado. Toda a gente se retirou, até esses dois que se haviam deixado ficar para abrirem a caixa de que só o rei possuía a chave. Mas, senhores, esboçara eu opor-me, não será sacrilégio, com o corpo dele aqui ainda quente? O prelado mandara os acólitos saírem e esperarem lá fora. Tirara devagar a estola, limpava ao lenço a testa suada e foi sem bulha à porta, aguçou o ouvido, espreitou a um lado e outro e encostou-se ao batente como para estarmos mais à puridade: não me metesse no assunto, resmungou de má cara. Um bispo e um prior, tão de seu íntimo serviço e confiança! Procuraram justificar a empresa: queriam ver, estava eu a compreender?, se era aí que sua alteza guardava a..., suspenderam-se ao abrir da boeta. Olharam para dentro, trocaram um olhar de espanto e tornaram a fechá-la. Foram-se embora sem dizer palavra. Pela janela vejo-os afastarem-se dissolvidos nas vibrações do dobre a finados, tintos do luar que tudo alaga mesmo o marulhar das ondas a espumejarem na linha da praia..., uma após outra, uma após outra, badalar de sino, eternas..., não há punhal de sicário nem acha de verdugo nem veneno de físico que as faça parar..., desvio os olhos por este pequeno quarto, a tumba com o cadáver, o altar improvisado, as velas a arderem, o corpo modelado sob a mortalha. Adivinham-se-lhe os lábios, o nariz, a testa, a depressão das órbitas..., meu senhor! Um tal rei!... Terminou a tua luta. Posso agora tratar-te por tu. Não, não é desacato. Também não receio que me ralhes ou castigues. Já não és rei. No discurso do meu pensamento já não haverá de ora em diante dons nem vós. Acabaram-se os foros de fidalguia, nivelados todos pelo tratamento de simples mortais..., eu sei. A visão dos humildes não é igual à do soberano. Lá em cima, lá muito em cima, como águia, plana ele abarcando horizontes ao mesmo tempo que miudezas do chão..., pediste-me um dia que te debuxasse a figura. Gostaria de a ter executado numa tábuha picta, como é timbre dos mestres pintores, a ouro-pigmento, realgar, cinábrio egípcio e azurite. A tanto não chega a minha habilidade. Pincel não é comigo, apenas o lápis e uma simples aguada de ocre-ferrugem, como vi fazer a um iluminista do scriptorium de São Domingos. Mas a composição..., lembra-me a nossa conversa: que dizes, senhor, sugeria Antão Faria que aí estava connosco a debuxarem-te no trono, a cadeira real encimada por dossel de brocado, a coroa na cabeça e o ceptro na mão, a opa roçagante de tela de ouro, forrada de marta, a desdobrar-se-te aos pés sobre o estrado atapetado de veludo carmesim, e, em baixo, os vassalos de joelhos prestando-te menagem?
Em redor, senhores e oficiais-mores aplaudiam ou contrariavam com murmurinhos trocados e meneios do rosto. Não era essa a minha ideia, contrapunha eu. Então qual? Coisa mais simples e, do mesmo lance, mais representativa..., já te não acode memória para te recordares: pó e nada...., seria assim: o teu vulto a dominar e o indicador direito a apontar a máquina do mundo, no centro a região elemental: a terra, a água, o ar e o fogo; a seguir, por sua precedência, os sete céus: a lua, mercúrio, vénus, o sol e ..., Marte, Júpiter e Saturno..., ajudava faria a minha hesitação. ... Depois, o firmamento, o cristalino, o primeiro móbil; por fim, nas alturas, o empíreo, morada dos bem-aventurados..., não era assim universal a visão de tua alteza? Sorriste de leve, afagando a barba: prouvera fosse, Resende. Senhor do universo só Deus. Mas estás prestes a ser senhor do mundo... A assembleia aprovava num sussurro. Não exageres. Debuxar-me-ás sentado no trono..., ordenavas. ... E colocarei à tua direita o escudo real e a esquerda a esfera..., insistia eu. ... A esfera, sim, dos matemáticos, a esfera astronómica, essa que em miniatura conservo sobre a mesa de trabalho... Eu sei. Vi-a ser fabricada na oficina daquele judeu que veio de Olivença e tem sua forja ali à rua da Ferraria, chama-se Belami e que manha de mãos! Entrava-se na loja e encontrava-se a gente de súbito na gruta de um cíclope: dava ao fole um moço quase nu, tanga enegrecida a cobrir-lhe as vergonhas, a chama do braseiro a sanguinhar-lhe o suor no corpo de efebo. Em brasa com a tenaz retirava Vulcano a haste de ferro que batia sobre a bigorna, arredondava, adelgaçava, o eixo tomava forma e mergulhava-o então a temperar na água fria, que rechinava em nuvens de vapor. De uma calote esférica...
O trabalho que tiveram em medi-la com todo o rigor o meu astrónomo Martim Boémia, o doutor Moisés e mestre Abraão Zacuto! E o zelo em assistirem ao corte e ao aparelhar das armilas, ao melindroso montar da esfera, ao limar de alguma cabeça de cravo mais pontuda. E de repente aí estavam o meridiano, a linha equinocial, os círculos paralelos, o zodíaco, os pólos..., e a terra no centro..., estamos encurralados numa concha, meu senhor. Até o pensamento nos é redondo, mas, quando olhamos a esfera é como se nos soltássemos. Vê, somos deuses a espreitar do cimo de uma nuvem a máquina do mundo! Não blasfemes. Não, não. Apenas mitos da fábula. Seja como for, farás o que te digo. Debuxar-me-ás no trono..., e colocarei à direita as armas reais, com os escudetes aprumados como ordenaste, e à esquerda a esfera..., teimava eu. ... E a meus pés..., rematavas com ar de desfrute... quem, meu senhor? ... A meus pés ajoelharás Antão Faria a prestar-me menagem. Antão Faria, sorridente, pôs o joelho no chão a beijar-te a mão que lhe estendias... Visão real, que tudo domina. Nós, cá de baixo, logo nos encobre qualquer muro de quinta, as árvores do pomar vizinho, o outeiro próximo, logo nos tolhe a meta imediata..., coube-me, no entanto, o privilégio de servir-te na qualidade de teu moço de câmara e de escrivaninha, acompanhar-te dia e noite para onde quer que fosses. Junto do teu ombro, de pé, nos meus dedos pena e aparos sempre prontos, à espera do aceno apenas esboçado, o meu silêncio atento habituado a prescrutar-te pensamentos e desejos..., um trato constante com os senhores que te serviam, a permissão de manuseio das obras da tua livraria, o conhecer esses sábios que diante de ti desdobravam pergaminhos e longas horas contigo permaneciam a explicá-los, seguindo com o ponteiro o contorno das terras e dos mares, o praticar com os grandes navegadores que entravam por teus Paços dentro sem serem anunciados, a trazerem-te sem delongas as novidades por lavar, quero as notícias de pronto, mal lanceis âncora no porto..., ordenaras..., sejam que horas da noite ou do dia forem... notícias sem água nem sabão...» In Fernando de Campos, A Esmeralda Partida, Prémio de Prosa de Ficção Eça de Queirós de Literatura de 1995, Difel, 1994/2008, ISBN 978-972-290-330-1.

Cortesia Difel/JDACT

Vida Ignorada de Leonor Teles. António Cândido Franco. «A História de Portugal teve em Leonor Teles e em João de Avis uma bifurcação de dois ramais, ou de duas vontades, em que um ficou por seguir. A História correu até hoje, a toda a velocidade, impante e ufana…»

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O Comércio do Invisível
«(…) Estava porém certa que o mundo físico e visível tal como se desenvolvera não era para si. Ela via a criação do mundo terreno de acordo com o relato bíblico. A Terra fora a última criação do Criador. Pretendera este por um lado emendar a mão, depois de alguns dos seres celestes se revoltarem contra a sua ordem e se exilarem nos recantos mais afastados do universo, criando aí um reino independente, a partir do qual iniciaram uma guerra declarada aos seres que lhe haviam permanecido fiéis, e por outro quisera descansar um pouco das fadigas da criação, vindo tomar a brisa cósmica naquele parque chamado Terra, com essa novidade que eram os seus habitantes. Acreditara ingenuamente que essa plateia permaneceria arredada da luta dos seus anjos. A criação da Terra obedecera a projecto distinto e estava apenas fadada a ser um intervalo de repouso nas trabalhosas canseiras em que o Criador se metera depois da rebelião dos seus anjos. O plano dessa criação desconhecia o Bem e o Mal e era por isso irrelevante nas premissas da rebelião.
Descuidara entretanto o Criador o extraordinário avanço dos revoltosos. Confinados a princípio a um pequeno recanto dos limites do universo, tinham vindo a multiplicar os seus domínios. Souberam eleger entre eles um condutor seguro, o Diabo ou o Divisor, que lhes dera uma estratégia de multiplicação imparável. Aproximavam-se assim dos planos mais luminosos da Criação como uma enchente se aproxima das terras secas. Durante largo espaço, funcionou a Terra como o lugar onde o Criador, longe do Bem e do Mal, descansava das suas preocupações, que muitas eram por via daquela guerra. Era o Paraíso, onde Deus, depois da experiência meio falhada da criação dos anjos, tentara emendar a mão, voltando a ter novas crias, desta vez mansas, ingénuas, humildes. Mas a capacidade de multiplicação do Diabo era já de tal ordem que se apercebeu da totalidade dos propósitos do Criador e se conseguiu insinuar no novo plano da Criação, subvertendo-o por dentro. Para isso conseguiu infiltrar na Terra o Bem e o Mal, que eram o meio ou a essência da luta dos seus anjos. Quando se apercebeu da presença destas duas forças junto do homem e da mulher, o desespero do Criador foi enorme. Viu os seus filhos mais jovens, nos quais apostara uma segunda criação isenta dos erros ou das imprevisibilidades da primeira, pasto das mesmas divisões em que a primeira criação soçobrara. Teve um momento de desalento, ao medir as consequências daquela convulsão.
A Natureza terrena saíra das suas mãos imortal; a garantia desse estado era o desconhecimento do Bem e do Mal. O primeiro resultado da destruição da primitiva ordem era o colapso dessa eternidade. Com o fim do estado imortal da Natureza, vinha o sofrimento da matéria, a dor, a doença, a noite, a escassez, a morte, o esforço, quer dizer, o Mal. Sem remédio, a Natureza, que fora a esperança do Criador, decaía de plano, perdendo a sua primitiva glória. Não que a Terra tivesse caído definitivamente nas mãos da rebelião diabólica, mas volvera-se pelo menos em novo e perigoso palco de investidas revoltosas. A Terra, que fora criada como intervalo de repouso, via-se de repente motivo duma inesperada disputa. No fundo, o confronto do plano anterior, próprio aos anjos, alastrava à Natureza terrena, fazendo dela um tabuleiro decisivo das forças em confronto. A Terra passava, no círculo geral do universo criado, de breve desvio quase irrelevante, tapada onde Deus vinha saborear a ignorância do Bem e do Mal, a região do meio, verdadeiro tampão entre os que habitavam as regiões luminosas e permaneciam fiéis ao Criador e os sublevados que haviam decidido tudo submergir em negra treva.
Todo este processo significara uma carregada derrota para os planos subtis onde viviam os anjos da Luz. A Terra, que fora criada muito próxima desses planos, estava agora meio chamuscada pelas labaredas da rebelião. Perdera o seu estado de jardim estável e glorioso e ganhara um semblante de fuligem cinérea, com céus enegrecidos por tempestades de fumos narcóticos e malévolos. Relâmpagos assustadores fendiam de há muito a escuridão em que a Terra mergulhara depois da intromissão dos anjos revoltosos. Ao optarem pelo conhecimento do Bem e do Mal, o homem e a mulher haviam perdido a imortalidade da sua primitiva criação e haviam outrossim ganho a liberdade de optar, quase sempre sem disso haverem a consciência, entre as duas forças em confronto». In António Cândido Franco, Vida Ignorada de Leonor Teles, Edições Ésquilo, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-8092-59-5.

Cortesia de Ésquilo/JDACT

Vida Ignorada de Leonor Teles. António Cândido Franco. «O rombo das convenções, o apuro dos sentimentos e a transcendência do amor são o mote para a viagem ao seio de uma história apócrifa, velada e secreta, que os historiadores persistem em ocultar»

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O Comércio do Invisível
«(…) Estes revoluteantes acontecimentos que tinham lugar no interior de dona Leonor Teles eram porém inexistentes para quem apreciasse de fora a jovem sobrinha de Guiomar Pacheco. Bem podia ela identificar com os olhos de dentro a estranha criatura que aparecera a Tobias, que todos os que a observavam de nada se apercebiam. Ninguém a notara até aí e não era agora que alguém se dignava reparar nela. Tudo se passava em segredo, dentro da cortina de silêncio da sua capa escura e mantilha. Tirando a ocasional observação que fizera ao cónego de Braga a propósito do sinal de Caim, ou a expressão de pavor que deixara escapar na capela do paço de Barcelos, e numa altura em que ela descia e subia já a escada dos mundos sobrenaturais como se transitava simplesmente do patamar duma barbacã para o alto dum torreão, ninguém ouvira dela uma palavra sobre a sua estranha vivência interior. Deixara ainda, com teima, de comer carne, mas isso não passava aos olhos dos adultos de braveza ou de falta de costumes. Santa Maria val! Nunca nenhum viu tal cousa, exclamava com frequência a tia, Guiomar Pacheco, quando percebia que a menina não filhava carne de animal e só trincava frutas, folhas ou raízes. Isolara-se nos aposentos que os tios lhe haviam destinado no paço de Barcelos, afastando do convívio todo o ser humano, com excepção duma jovem aia, pouco mais velha do que ela, chamada Maria Peres, que se ocupava do preparo e do arranjo de sua casa. Viera recomendada pelos Castros galegos, que tinham ainda ligação de parentesco vago com o pai da donzela. Era enfiada, pouco atraente, seca de corpo, lábios de pergaminho, nariz deformado, mas levava na apreciação de dona Leonor Teles vantagem sobre todas as outras aias que os tios lhe haviam apresentado. Era silenciosa. O silêncio, num mundo em convulsão como o dela, sempre pronto à metamorfose, era o alicerce da sua experiência; a tagarelice, tão vulgar naquele género de meninas, era ao invés a sua distracção. Demais, era a Peres muito dotada para o apresto doméstico. A casa de dona Leonor Teles, apesar da ausência de pessoal, não perdia em relação à da irmã, que se distinguia por alfenim, ou à da prima, vistosa mas perdulária. Tinha asseio irrepreensível e a formosura dos seus adornos abalava os sentidos mais que qualquer outra. Mas acima de tudo, Maria Peres, fosse pelo jeito, fosse pelo apagamento, não afugentava a subtil exalação odorífera que fora a grande revelação da vida de dona Leonor Teles e que tão esquiva se mostrava ao contacto humano.
Guiomar Pacheco, quando se apercebeu daquele isolamento, não estranhou. Há muito que ambientara a alma à natureza furtiva e singular da sobrinha. O facto da sobrinha não filhar carne para comer fazia dela um ser separado da comunidade civil. Que outro se podia aguardar de ti, menina? És bicho de além mais que senhora de prol. A tua senda está mais numa cela de mosteiro que em torre de paço. E tanto insistia que um dia levou a sobrinha a Braga a visitar as agostinhas de Braga. Dona Leonor Teles, embrulhada nos panos da capelina, não deu sequer pelo lugar, a que mais tarde, em situação reforçada, regressou. Assim como assim, a tia gabava-lhe a limpeza, o gosto dos bordados e a marca dos vários enfeites coloridos que aformoseavam a moradia. E guardava por ela, quando a arredava da comunidade, um veio de respeito, que mais tinha a ver com a discrição que com a singularidade. Dona Leonor Teles não ligava ao assunto das monjas, porque a única cela que conhecia era a que tinha dentro de si. Era de mais bravia para se poder adequar à rígida formação duma casa de religiosas». In António Cândido Franco, Vida Ignorada de Leonor Teles, Edições Ésquilo, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-8092-59-5.

Cortesia de Ésquilo/JDACT

sexta-feira, 26 de junho de 2015

O Circo da Matemática. John A. Paulos. «Dado que muitos (todos?) fenómenos podem ser reduzidos a sequências complexas de dicotomias de ligado-desligado, aberto-fechado, sim-não, e porque pelo menos os computadores funcionam desta maneira, os números e os códigos binários…»

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Números e Códigos Binários
«Os números binários são aqueles que consistem inteiramente em uns e zeros. Embora conhecidos pelos antigos matemáticos chineses, foram investigados seriamente pela primeira vez pelo matemático e filósofo alemão Gottfried Leibniz, motivado por considerações metafisicas de ser versus não-ser. Dado que muitos (todos?) fenómenos podem ser reduzidos a sequências complexas de dicotomias de ligado-desligado, aberto-fechado, sim-não, e porque pelo menos os computadores funcionam desta maneira, os números e os códigos binários desde então há muito que desceram do reino metafisico para o mundano. De qualquer modo, como é que ajustamos os nossos algarismos árabes nesta aparência mais austera de zeros e uns? Aqui, os exemplos servem melhor do que a explicação. O número 53 é expresso como 32 + 16+ 4 + 1, sendo cada um dos termos uma potência de 2 (considera-se que 1 é a potência zero de 2,20). Definimos então 110101 como sendo a representação binária de 53, em que cada 1 ou 0 indica a presença ou a ausência de uma potência de 2. Isto é, 53 = (1 x25) + (1 x 24) + (0 x 23) + (1x22) + (0 x 21) + (1 x 20). Tal como nos algarismos árabes, as posições dos dígitos determinam o seu valor.
Mais exemplos: o número 83 = 64 + 16 + 2 + 1, expresso em termos binários é 1010011, (1 x26)+ (0 x 25) + (1 x24)+ (0 x 23) +(0 x 22) + (1x21) + (1 x 20). De forma semelhante, 217 = 11011001. Os números de 1 a 16 expressos em forma binária são: 1, 10, 11, 100, 101, 110, 111, 1000, 1001, 1010, 1011, 1100, 1101, 1110, 1111, 10000. Movendo-nos na outra direcção, traduzimos 110100 como 52, 1111100 como 124 e 1000000000 como 512 (29). Uma vez os algarismos árabes expressos em forma binária, usamos as mesmas regras aritméticas e algoritmos (v.g., e vai...) para trabalhar com eles, recordando apenas que estamos a trabalhar com potências de 2 e não com potências de 10.
Não se limitando apenas aos números, os códigos binários também podem ser utilizados de forma muito geral e de diferentes maneiras. Por exemplo, se atribuirmos valores lógicos a afirmações (1 para verdadeiro, 0 para falso), então operações básicas da lógica, negação de uma afirmação, ligar duas afirmações com e, ou, ou se... então..., etc., são realizáveis facilmente através de operações sintácticas simples ou, fisicamente, por intermédio de circuitos electrónicos simples. A uma afirmação precedida por um não, é atribuído o valor lógico 0 ou 1, dependendo de à afirmação original ter sido atribuído um 1 ou um 0. A afirmação formada pela junção de duas outras afirmações através de um e adquire o valor lógico 1 unicamente se ambas as afirmações que a compõem têm o valor lógico 1. [Estas operações lógicas são chamadas booleanas, em honra do matemático inglês do século XIX George Boole, que, segundo a hiperbólica (hiperboólica?) estimativa de Bertrand Russel, descobriu a matemática pura]
Codificar letras e outros símbolos como sequências de zeros e uns também não é problema, dado que a cada carácter é atribuída uma sequência diferente de dígitos binários, ou bits. De acordo com o padrão de convenções informáticas ASCII, cada símbolo tem um código de 8 bits (8 bits = 1 byte), e existem 256 (28) códigos destes, um para cada uma das 52 letras, minúsculas e maiúsculas; para os algarismos de 0 a 9; e para símbolos de pontuação; aritméticos, de controlo e diversos. P tem o código 01010000; V, 01010110; b, 01100010; t, 01110100; “, 00100010; &, 00100110, e assim por diante. Estes códigos são utilizados para processamento de texto, aplicações em que os símbolos não são geralmente manipulados tal como o são em aritmética, mas apenas apresentados como texto». In John A. Paulos, O Circo da Matemática, Para além do Inumerismo, Forum da Ciência, Publicações Europa América, 1991, ISBN 972-103-690-0.

Cortesia de PEAmérica/JDACT

Claustro do Silêncio. Prémio Vergílio Ferreira. Luís Rosa. «E o presente, nesta era de paixões incendiadas pela guerra de liberais e absolutistas, é o peso da exploração e dos impostos. Ela sabia bem aquela eloquente linguagem de silêncios. Os frades não falavam. Por palavras»

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O inglês
«(…) Amei-a desde que nasci. Etelvina Góis, filha de Angélica Góis. Crescemos juntos. Minha mãe era a mais bela serrana das terras agrestes de Molianos. Nunca soube quem era o meu pai. Dizem que morreu durante as Invasões Francesas, quando toda a região estava a ferro e fogo e os soldados do conde de Erlon violaram os túmulos de Pedro e de dona Inês à procura de ouro. Foi na terceira invasão. A do marechal Massena. Mas eu sei que não foi assim. A beleza de minha mãe foi a sua infelicidade. É-a quase sempre , a beleza da mulher. O abade era um homem político e mulherengo. A ligeireza da política e a dos amotes vadios são duas faces da mesma superficialidade. Ou vaidade. Todos os homens poderosos o são, vaidosos e superficiais, no julgamento dos outros, tidos como inferiores, por natureza. Dormes, frei João Chiqueda? Por que dizeis tão tarde aquilo que hei-de escrever de vossa memória, frei Elias? Há horas de safadeza e horas de grandeza. No mesmo homem. Somos um bocado disso tudo. O amor e o ódio, o bem e o mal, o infinito e a finitude. Para mim, a hora da Lua é a hora da memória. Mas todas as horas são boas e más para tudo. Faláveis de vossa mãe. Morreu de parto. Ou de desgosto. Ou de peçonha conveniente. Ou simplesmente porque era necessário que morresse. O modo é circunstância.
Que insinuais, frei Elias? Há pouco ouvi dizer a uma mulher do campo que aqui, na terra dos coutos de Alcobaça, todos somos filhos de frade. Tens razão. Ou porque o somos mesmo ou porque assumimos a suspeita. No fundo, com algum orgulho. Para dizer que não somos filhos de ninguém. Porque aqui o Mosteiro é tudo. O pai de todos. Foi ele que fez esta terra e a desbravou. Com mérito. E é ele que agora a explora, como senhorio perene, e com ódio de todos. Os povos esqueceram as origens e só lembram o presente. E o presente, nesta era de paixões incendiadas pela guerra de liberais e absolutistas, é o peso da exploração e dos impostos. O alijar da carga secular do senhorio. Cada época tem o seu tempo e o seu destempo. O Mosteiro morreu no dia em que passou a ser senhorio. Morre-se num momento ou numa agonia longa. No silêncio ou na orgia da opulência. Mas toda a instituição tem o fim marcado quando adulterou a sua razão de ser. Frei Elias fez uma pausa longa, banhada pela luz pálida, dourada, da Lua, que aflorava, enorme, por cima dos cumes da serra dos Candeeiros, alumiando os túmulos onde os dois frades haviam feito o seu refúgio. Quem vos criou, frei Elias? Terá sido o Mosteiro?
Não. Um mosteiro de homens não se dá bem com crianças. É um mundo seco de homens celibatários. Quando minha mãe morreu, uma boa alma a mando do celeireiro da granja do Cidral, ali à saída de Alcobaça para Valado de Frades, foi-me pôr à porta de Angélica Góis, que morava numa casa aconchegada, portas afora da cerca do convento. Angélica, quando me recolheu criança, alertada pelo choro, na noite que caíra há pouco, ainda viu uma sombra sumir-se nos arbustos. Ficara de atalaia, para se certificar de que o inocente era recolhido, cumprindo a recomendação do mandador, que bem sabia o que fazia e os cuidados que mandara ter no cumprimento da encomenda. Angélica benzeu-se sem saber que fazer, ela que tivera uma filha que ia nos dois anos, Etelvina, e toda a vida vivera solta, amiga de amorios e desvarios, mas pouco atreita a cuidados e maternidades. Olhou os panos que envolviam a criança de linho fino, alvo, de altar de missa, coisa santa, envolvendo aquele pobre de Cristo, abandonado ao mundo. E, fixando melhor através da surpresa e da estupefacção, notou aquela flor-de-lis bordada ao canto, do escudo do Mosteiro.
Caiu do pasmo de tal admiração. Grande mistério ali estava. Concentrou-se, como se tivesse decifrado um código, e adoptou a criança, ciente de que o tempo haveria de esclarecer o mistério e dar caminho seguro ao inocente, que, por certo, teria alguém a olhá-lo de longe, sempre ausente e sempre presente. Ela sabia bem aquela eloquente linguagem de silêncios. Os frades não falavam. Por palavras». In Luís Rosa, O Claustro do Silêncio, Editorial Presença, Lisboa, 2002, ISBN978-972-23-2902-6.

Cortesia de EPresença/JDACT

O Mistério do Infante Santo. Jorge Sousa Correia. «O que sou eu?, pergunta feita de súbito, desgarrada, impertinente. Contrariado, Duarte fixou o irmão, sem ter na voz uma resposta acabada para lhe dar. O que sois vós, como?, pergunta retribuída com sinceridade»

jdact e wikipedia

Um irmão mal sintonizado
«(…) Entre a possibilidade de uma chalaça ou de uma crítica escondida, o infante Fernando sentiu-se desconfortável. Nem era porque o irmão fosse desconcertante ou que tivesse sequer sentido de humor. Não, nada disso! A sensibilidade da missão que o trazia ali é que o tornava inseguro. Por isso, quis responder, mas a resposta não lhe saiu espontânea e não esteve para rebuscar palavras que o atrapalhariam mais. Sem Duarte I ainda saber, o tema da conversa, que Fernando quer rodear de toda a formalidade, vai no sentido de propor a sua saída do reino em busca de glória e do pecúlio que parece não conseguir gerar em Portugal. Sente-se mal aproveitado, quer sair do reino para dar ao seu nome e à sua Casa a importância que em Portugal não obtém. Isto é o que vai dizer ao rei, embora, por enquanto, lhe omita o verdadeiro motivo da sua presença ali. Embaraçado, hirto, num plano inferior relativamente à posição sentada do monarca, o infante Fernando comprime-se. Não era para menos. Ao esconder o que não queria dizer, omitia a verdade, uma forma próxima da mentira, coisa que se pensasse bem não faria, pois, nessa hora ou em qualquer lugar, Deus estaria de olho nele.
Bom observador, o rei apercebe-se incomodado da descomposta figura do infante, despertando nele um esforço maior para decifrar a mensagem para além do que parece. Mau sinal, pensou o rei, desconfiado. Duarte começava a preparar-se para qualquer eventualidade, mas a questão que o irmão lhe pôs, quase uma provocação, apanhou-o desprevenido. O que sou eu?, pergunta feita de súbito, desgarrada, impertinente. Contrariado, Duarte fixou o irmão, sem ter na voz uma resposta acabada para lhe dar. O que sois vós, como?, pergunta retribuída com sinceridade.
O rei, afastado do que o irmão queria que ele soubesse responder-lhe, entendia que ao devolver-lhe a pergunta invertia o constrangimento que esta lhe causou, além de passar para Fernando a difícil tarefa de se explicar. Senhor, ficai sabendo, que nunca no meu pensamento existirão palavras espúrias que de algum modo vos façam sofrer, volveu Fernando, com uma dureza pouco consentânea com o seu modo sensível. Ao revelar-vos as minhas intenções, estou ciente da vossa compreensão para com o homem que se sente privilegiado por ser vosso irmão, mas, diminuído pelas circunstâncias, também percebe que é o mais infeliz dos príncipes.
- Antes de prosseguirdes, sabei já que a vossa conversa me contraria avantajadamente. Se persistis em substituir no vosso discurso as palavras por imagens, sabei que o meu coração se comprime a cada verbo que pronunciais. Sem ter por enquanto uma solução à vista, Duarte, numa manobra que pretendia fazer precipitar as palavras do irmão, disse-lhe: prossegui então, porque para incompreensões já estou armado. Acusando o remoque, Fernando esperou algum tempo para voltar a dirigir o olhar ao irmão, procurando com manifesta dificuldade recompor-se do golpe recebido. As precedências tinham muito peso, e Fernando, por maioria de razão, apagava-se sempre que tinha de se confrontar com os irmãos mais velhos. Tinha razões para isso. O seu sentimento de inferioridade revelava-se complexo por não ser capaz de vencer a barreira da menoridade, manifestações que o levaram quase a claudicar perante a última tirada do irmão». In Jorge Sousa Correia, O Mistério do Infante Santo, A Revelação dos Pecados da Ínclita Geração, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-067-6.

Cortesia de CAutor/JDACT

O Mistério do Infante Santo. Jorge Sousa Correia. «… dizei ao criado do rei que quinta-feira depois da vigília da Santa Cruz de Setembro, mais para a tarde, me avistarei com ele e que lhe agradeço o tempo que se dispõe ceder-me…»

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Um irmão mal sintonizado
«(…) Depois de quase três anos de governação sossegada, o reinado de Duarte I encontrou-se com o seu verdadeiro destino. Incomodado, sentiu-se desconfortável, transformando pensamentos em imagens sombrias. Isto porque se registam acontecimentos que o ultrapassam, revelações que não consegue confirmar, mas que alimentam pressupostos preocupantes. Surpreende conversas que acabam quando se aproxima, recebe pedidos dos grandes nobres para abandonarem o país, razão mais do que suficiente para o rei pensar que algo está para acontecer. Indisposto com o clima do diz-que-disse, boatos intencionalmente infundados e de origem desconhecida geram no rei uma grande necessidade de descobrir o que até ver não passaria de suspeições. O rei, sempre temente a Deus e à Santa Madre Igreja, sem contudo partilhar os obcecados fundamentalismos do infante Henrique ou os exageros devocionais do infante Fernando, ficava mais perto da pragmática militância cristã do infante Pedro. É dentro deste estado de espírito que receberá, sem entender porquê, um pedido de audiência do irmão mais novo, o qual considerou despropositado, dada a relação próxima que tinha com ele. Deste modo pensando, como resposta, Duarte I mandou ao irmão um mensageiro sem mensagem escrita, pois não pretendia ser demasiado protocolar, quando a pessoa a quem se destinava o recado não era de cerimónias: sua senhoria o nosso amado rei, enviou-nos dizer que vos espera; pediu-me também que vos lembre de que sereis sempre bem recebido, isto porque não percebe o tamanho de tanta formalidade.
Desmontando da alimária, em vénia respeitosa, o cavaleiro ficou a aguardar por uma resposta. Enganou-se. O infante Fernando, um tanto desarmado, pressentiu no recado do rei uma crítica, e deste modo apenas permitiu ao homem desfazer o salamaleque e aguardar pela réplica, porque tinha ainda de pensar na refutação. A resposta deveria ser simples, refutar era desajustado, um sim ou um não chegavam, por que razão se punha o infante Fernando numa posição defensiva e de semblante fechado? Sem aviso, o infante virou as costas ao cavaleiro na direcção da casa, por coincidência localizada nas suas terras de Salvaterra, mesmo ao lado do Paço de Almeirim, que com elas fazia extrema e onde o monarca Duarte se quedava por essa altura. João Rodrigues, escudeiro servil, homem da sua intimidade e confiança, foi atrás dele. Conhecia-lhe os hábitos e toda as sequências do quotidiano, e nesta conformidade o aio não tinha qualquer dúvida sobre o caminho que levavam os seus passos, encontrando-o junto do altar da capela pessoal, dentro da câmara, onde muitas vezes resistia ao sono para em oração se oferecer a Deus. Era uma rotina diária, preenchida de constantes e piedosas rezas, acrescentando à sua extensa lista de divindades outros motivos para rezar.
Sem mais santos para velar, continuava as preces entremeando vigílias com jejuns diários, em nome das construções imateriais que lhe devoravam a cabeça. Dominado pelo sectarismo religioso, entregava a alma a Deus, a Cristo, a todos os santos, também à Igreja, que lhe alimentava o facciosismo e ficava com os bens. João Rodrigues, quase a sua alma gémea, convivia com todo este fervor religioso, ele próprio partilhava os serões e as sentinelas, privando-se do sono para seguir disciplinado o seu amo. É verdade que ultimamente lhe tinha espreitado no semblante um abatimento fora do habitual, já não o cansaço provocado pela fome e pela subtracção do sono, apercebendo-se de que se tratava de uma coisa mais íntima, um sentimento que o fazia sofrer, e já não o êxtase do sofrimento. Preocupado, deteve-se de pé junto da ombreira da porta do quarto, em silêncio, à espera que o infante Fernando pusesse fim à mediação encetada com a divindade e lhe revelasse a resposta que havia de dar ao escudeiro de do irmão Duarte. De onde estava via-lhe sem dificuldade as costas, não tão bem como se o visse à luz do dia, mas o suficiente para lhe ver explícitos os contornos do corpo genuflexado. Reparou como o infante se levantou lentamente e como fez a última saudação, seguida do sinal da cruz, ligações divinas mais eficazes quando feitas sob restrição da claridade, dentro dos templos, que neste caso era um pequeno oratório no interior do quarto. Viu-o depois virar-se, seguir na sua direcção, percorrer a distância de cabeça baixa e olhar no chão, parando para lhe dirigir a palavra mansa, monocórdica, enlevada: dizei ao criado do rei que quinta-feira depois da vigília da Santa Cruz de Setembro, mais para a tarde, me avistarei com ele e que lhe agradeço o tempo que se dispõe ceder-me. Depois, só para João Rodrigues ouvir, lembrou-o: amanhã não posso, é quarta-feira, jejuo todo o dia. A tal quinta-feira chegaria. Duarte I, numa tarde aborrecida cheia de trabalho, viu chegar o irmão até si e saudá-lo pronunciadamente, gerando nele um comentário enfastiado. Senhor, meu irmão, de vós não mereço tamanha reverência, disse-lhe o rei». In Jorge Sousa Correia, O Mistério do Infante Santo, A Revelação dos Pecados da Ínclita Geração, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-067-6.

Cortesia de CAutor/JDACT

quinta-feira, 25 de junho de 2015

O Mar na Poesia da América Latina Isabel Barcelos. «O mar substância inicial, é a mãe de todas as coisas, segundo o mito cosmogónico ‘la creación’ dos índios Kogui da Colômbia: El mar era la madre. A água é mãe, espírito, não matéria, é ‘Aluna’…»

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A criação. Koguis, Colômbia
«Primeiro estava o mar. Tudo estava escuro.
Não havia sol, nem lua, nem gente, nem animais, nem plantas.
Só o mar estava em toda a parte.
O mar era a Mãe.
Ela era água e água por toda a parte
e ela era rio, lagoa, cascata e mar
e assim ela estava em toda a parte.
Assim, primeiro, só estava a Mãe.
Chamava-se Gaulchovang.
A Mãe não era gente, nem nada, nem coisa alguma.
Ela era Aluna [pensamento ou ideia].
Ela era espírito do que estava para vir
e ela era pensamento e memória.
Assim a Mãe existiu só em aluna no mundo mais baixo,
na profundidade,
só.

Então quando existiu assim a Mãe,
formaram-se em cima as terras, os mundos, até onde está hoje
nosso mundo.
Eram nove mundos e formaram-se assim:
primeiro estava a Mãe e a água e a noite.
Ainda não tinha amanhecido.
A Mãe chamava-se então Se-ne-nuláng.
Também existia um pai que se chamava Kata Ke-ne-ne-Nuláng.
Eles tinham um filho que chamavam Bunkua-sé.
Mas eles não eram gente, nem nada, nem coisa alguma.
Eles eram aluna. Eram espírito e pensamento.
Esse foi o primeiro mundo, o primeiro lugar e o primeiro instante.

Então formou-se outro mundo mais acima, o segundo mundo.
Então existia um Pai que era um tigre.
Mas não era tigre como animal, era tigre em aluna.

Então formou-se outro mundo mais acima, o terceiro mundo.
Já começava a haver gente. Mas não tinham ossos nem força.
Eram como vermes e minhocas.
Nasceram da Mãe.

Então formou-se o quarto mundo.
A sua mãe chamava-se Sáyaganeye-yumáng
e havia outra Mãe que se chamava Disi-se-yuntaná
e um Pai que se chamava Sai-taná.
Este Pai foi o primeiro a saber como iam ser as pessoas do nosso
mundo
e foi o primeiro a saber que iam ter corpo, pernas, braços e cabeças.
[…]

In Isabel Aguiar Barcelos, O Mar na Poesia da América Latina, tradução de José Baptista, Assírio Alvim, documenta poética, Lisboa, 1999, ISBN 972-370-527-3.

Cortesia de AAlvim/JDACT

Escalas do Levante. Amin Maalouf. «… era o nome que se dava antigamente a esse rosário de cidades mercantis através das quais os viajantes da Europa chegavam ao Oriente. De Constantinopla a Alexandria, passando por Esmirna, Adana ou Beirute…»

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«Esta história não é minha, conta a vida de outro homem. Com as suas próprias palavras, que eu apenas compus quando me pareceu que careciam de clareza ou de coerência. Com as suas próprias verdades, que valem o que valem todas as verdades. Ter-me-á ele mentido por vezes? Não sei. Em todo o caso, não sobre ela, não sobre a mulher a quem amou, não sobre os encontros de ambos, os seus desvarios, as suas crenças, as suas desilusões; disso tenho a prova. Mas sobre as suas próprias motivações em cada etapa da sua vida, sobre a sua família tão pouco comum, sobre essa estranha maré da sua razão, quero dizer, esses fluxos e refluxos incessantes da loucura à sanidade, da sanidade à loucura, é, possível que ele não tenha dito tudo. No entanto, julgo-o de boa-fé. Inseguro sem dúvida tanto na memória como no juízo, quero admitir. Mas constantemente de boa-fé. Foi em Paris que me cruzei com ele, por acaso, numa carruagem do metro, em Junho de 1976. Lembro-me de ter murmurado: É ele! Bastaram-me apenas alguns segundos para o reconhecer. Nunca o encontrara até, então, nem ouvira o seu nome. Apenas tinha visto uma imagem dele num livro, anos antes. Não era um homem ilustre. Enfim, num certo sentido era-o, pois tinha a sua fotografia no meu manual de história. Mas não se tratava do retrato de uma grande personagem com o nome escrito por baixo. A fotografia mostrava uma multidão reunida num cais; em segundo plano, um navio que enchia o horizonte, com excepção de um quadrado de céu; a legenda dizia que durante a Segunda Guerra, alguns homens do Velho País tinham ido combater, na Europa, nas fileiras da Resistência, e que ao regressar haviam sido recebidos como heróis. Na verdade, no meio da multidão, no cais, havia um rosto de jovem deslumbrado. Os cabelos claros, os traços lisos, um pouco infantis, o pescoço esticado para o lado, como se acabasse de receber essa grinalda que o ornamentava.
As horas que eu tinha passado a contemplar essa imagem! Na escola, tivéramos o mesmo manual de história em quatro classes seguidas, devíamos estudar um período em cada ano: primeiro a Antiguidade gloriosa, das cidades fenícias às conquistas de Alexandre; depois os Romanos, os Bizantinos, os Árabes, os cruzados, os Mamelucos; em seguida os quatro séculos de dominação otomana; por fim as duas guerras mundiais, o mandato francês, a independência... Quanto a mim, era demasiado impaciente para esperar o desenrolar do programa. A história era a minha paixão. Logo nas primeiras semanas tinha percorrido todo o livro, não me cansava de ler e reler, o que deixara as páginas, uma após outra, dobradas, enrugadas, desbeiçadas, abundantemente sublinhadas, manchadas de garatujas, de notas, de interjeições a modo de comentários; no fim apenas restava da obra um lastimável novelo de folhas esfiapadas. Isto quer dizer que tive tempo bastante para escrutar aquela imagem, e reter cada pormenor dela. O que me fascinava nela? Havia sem dúvida nesse rectângulo preto e branco, não maior do que a palma da minha mão, tudo aquilo com que eu nessa idade sonhava: a viagem por mar, a aventura, a dedicação extrema, a glória, e talvez mais do que tudo aquelas jovens com o olhar virado para o deus vitorioso... Agora, o deus estava ali. A minha frente, em Paris, de pé no metropolitano, agarrado a uma barra metálica, desconhecido rodeado por uma multidão de desconhecidos. Mas sempre aquele olhar deslumbrado, aqueles traços lisos de criança velha, aquela cabeça de cabelos claros, hoje brancos, ontem talvez louros. E sempre aquele pescoço esticado para o lado, como não reconhecê-lo?
Quando desceu na estação Volontaires, segui-lhe os passos. Eu ia a um encontro, nesse dia, mas tinha feito a minha escolha: a pessoa com quem me devia encontrar poderia voltar a chamá-la ao fim da tarde, ou no dia seguinte; quanto a ele, estava convencido de que se lhe perdesse o rasto, não voltaria a vê-lo, nunca mais. No momento de sair para a rua, parou diante do mapa do bairro. Aproximou-se, até lhe encostar o nariz, depois recuou, procurando a distância apropriada. Os olhos traíam-no. Era a minha oportunidade, aproximei-me dele. Talvez eu possa ajudá-lo...» In Amin Maalouf, Escalas do Levante, Difel 82, Algés, 1997, ISBN 972-290-355-1.

Cortesia de Difel/JDACT

quarta-feira, 24 de junho de 2015

Vasco da Gama. O Caminho da Índia. Elaine Sanceau. «Os seus navios não se encontravam já em mares desconhecidos. Os problemas que tinha de resolver eram de outra espécie, tendo ainda neste caso Vasco da Gama sido julgado com pouca justiça»

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«Se se perguntasse a esse personagem vago, quais foram as três grandes viagens dos anais dos Descobrimentos, naturalmente responderia sem hesitação: a de Colombo à América, a de Vasco da Gama à Índia e a de Magalhães à volta da Terra. Todavia, se procurássemos saber o lugar que cada um desses feitos ocupa na sua estima, é provável que encontrássemos em primeiro lugar a aventura de Colombo. Uma das razões disto é que está mais bem informado a respeito dela. A história e a lenda, muito em especial a lenda, do visionário genovês que atravessou o Atlântico são familiares a todo o colegial nos seus pormenores principais. Os outros não tiveram uma propaganda tão grande. Os méritos da circum-navegação são evidentes, e sempre serão, claro está, reconhecidos; porém, a segunda das grandes viagens da última década do século XV, apesar de haver sido, na realidade, a mais difícil e perigosa de todas até então empreendidas, com frequência tem sido tida em pouca consideração. Fora de Portugal, Vasco da Gama, para muita gente, não passa de um nome apenas; e, até mesmo onde se sabe um pouco o que tal nome significa, muitas vezes se lhe têm referido com provas de ignorância ou de incompreensão. No fim de contas, que fez, na verdade, Vasco da Gama?, é o que se ouve às vezes perguntar. A Índia não era um continente por descobrir. Já lá haviam chegado viajantes por terra, de tempos a tempos. O oceano Índico era conhecido dos navegadores árabes. Vasco da Gama teve só de seguir ao longo da costa da África até dobrar o Cabo, e na costa oriental houve só que arranjar piloto. Claro está que foi coisa perfeitamente simples..., ou assim seria se Vasco da Gama saísse de Lisboa a bordo dum vapor! Mas a rota de um barco à vela não pode traçar-se em linhas rectas sobre um mapa, mesmo que existisse naquele tempo uma carta atlântica.
Um navio à vela deve deixar a costa para buscar o vento, que sopra onde melhor lhe parece nas paragens remotas do oceano. Os alísios favoráveis podiam levar Colombo às Índias em 36 dias, mas Vasco da Gama, depois de ter navegado para o Sul durante outro tanto tempo, encontrava-se ainda a meio do Atlântico, a milhares de milhas de qualquer costa. Não há dúvida de que, uma vez dobrado o Cabo, a caminho de Moçambique, apenas uma viagem de oito meses! Os seus navios não se encontravam já em mares desconhecidos. Os problemas que tinha de resolver eram de outra espécie, tendo ainda neste caso Vasco da Gama sido julgado com pouca justiça. Alguns escritores, que parecem não se lembrar da situação internacional dessa época, têm dito que ele não tinha tacto, que cometeu erros, que só levantou conflitos. Censuram-no por ele se ter zangado com os mercadores árabes da costa oriental. Mas não eram estes que estavam mais prontos azangar-se com ele? Que outra coisa poderia esperar-se que acontecesse entre um cristão do século XV desejoso de expandir o campo de influência da sua terra, e os muçulmanos, que até então haviam sido senhores únicos do campo? É preciso pormos de parte as nossas opiniões modernas, a nossa tolerância, o nosso ecletismo suave, a nossa estima pelos sectários de uma fé pura e viril, temperada pela noção da responsabilidade para com nações de cultura menos avançada do que a nossa. O século XV não conhecia nenhuma destas coisas. Para um cristão daquela época, não podia encontrar-se qualquer espécie de virtude num discípulo do falso Profeta, o abominável Mafoma». In Elaine Sanceau, Vasco da Gama, O Caminho da Índia, tradução de António Dória, Civilização Editora, Porto, 2013, ISBN 978-972-263-622-3.

Cortesia de Civilização/JDACT

terça-feira, 23 de junho de 2015

A Filha do Barão. Célia C. Loureiro. «Os olhos dóceis do barão João, escuros como os de Mariana, não viam mais nada desde que aquela menina nascera. A vaidade inicial de dona Sofia, por julgar que os três perfaziam um bonito retrato de família, desfez-se…»

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1805 - 1806
«(…) A rapariga viera sentar-se numa cama de folhas velhas de jornal, abrigada da frente ribeirinha numa daquelas ruelas interiores da cidade. A menina que geralmente se sentava ali a estender castanhas assadas sobre uma pequena fogueira improvisada começava por volta daquela hora e só regressava a casa quando escurecia. Durante todo o dia não comia mais do que três castanhas assadas, a fim de não prejudicar o negócio. A mãe assim a instruíra e ela obedecia, porque as irmãs, bem mais pequenas, comiam apenas um caldo aguado a meio do dia, e ela apiedava-se da sua fome. Teria dois ou três anos a menos que Mariana e um aspecto bem menos cuidado. Aquecia as mãos na chama antes de recolher as castanhas com gestos rápidos, e o cabelo apresentava-se gorduroso sob um xaile puído, enrolado em torno do pescoço e das costas. Tinha os pés envoltos em tiras de pano sujas e as unhas encardidas, as mesmas com que assou as castanhas que o barão João recebeu para entregar à filha, envoltas num pequeno pedaço de jornal. Fechou-lhe a mão em concha sobre três castanhas quentes, após estender uma pequena moeda à criança. Mariana arquejou ante o inesperado prazer que a sensação de algo quente na mão lhe causou naquela manhã de orvalho. O sorriu-lhe uma última vez, paternalmente: para vos manter aquecida durante a viagem.
Mariana arriscou um olhar à berlinda, apenas para descobrir que a voz da mãe guinchava contidamente ordens à criada para que posicionasse correctamente o tijolo quente, envolto em lã, sob os seus pés enregelados. Dona Sofia tinha ciúmes da relação afectuosa da filha com o pai. Tratando-se de uma mulher fria e de criação brusca, empurrada às pressas para um barão à época falido, antes passar fome ao lado de um barão do que refastelar-se em abundância com um ourives, não conhecera outro carinho que não o do casamento. E vira-se rapidamente preterida em favor da filha. Era por isso que dizia ter-se valido dos conhecimentos dos pretos libertos que povoavam os recantos mais obscuros da cidade para se precaver de uma nova gravidez. Uma filha fora mais do que suficiente para lhe roubar inevitavelmente o amor do marido, teria de ser tola para o afastar ainda mais.
Os olhos dóceis do barão João, escuros como os de Mariana, não viam mais nada desde que aquela menina nascera. A vaidade inicial de dona Sofia, por julgar que os três perfaziam um bonito retrato de família, desfez-se com prontidão. Era raro ver-se um homem tão apegado a uma criança, ainda para mais se a mesma era do sexo feminino. Acabou por achar a filha indigna de tantas atenções e aborrecia-se com os seus mimos e caprichos, que não passavam de um espelho dos seus. A comunicação recente de que seria obrigada a acompanhar Mariana ao Douro e a não regressar, porque o marido estava condenado a uma morte lenta, enchera-a de lágrimas difíceis de tragar. Mesmo nas suas últimas horas, o marido estava mais preocupado com o bem-estar daquela fedelha mimada do que consigo próprio. Tentara convencê-lo de que deveriam ficar e olhar pela sua saúde, prometera isso perante a Igreja, mas o barão metera-lhe uma carta por entre os dedos e reafirmara as suas intenções de que rumassem a Arraiais, entregassem a propriedade por casamento a um inglês qualquer que pretendia tirar proveito da região vinícola do Douro e não voltassem ao sul a não ser que ele lhes desse ordens nesse sentido». In Célia Correia Loureiro, A Filha do Barão, 1809, Marcador Editora, 2013/2014, ISBN 978-989-754-039-4.

Cortesia de Marcador/JDACT

Van Gogh e Sétimos Aforismos. Vicente Sanches. «Das provas da existência de Deus, a melhor..., é documental. Um argumento..., ‘documento!’ Documento? ‘Fac-simile’. Fotocópia! Fotocópia?! Fotocópia..., de Deus! Hein?! Fotocópia de Deus?! Perfeita! E autenticada! Autenticada?!»

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Sétimos Aforismos
«(…) Fui passear ao Jardim Zoológico. E diz-me a certa altura um passarinho: há menos sentido metafísico no interior da cabeça de muitos macacos..., que no exterior do pescoço..., da dona girafa!
Duas hipóteses. A hipótese da vida para além da morte. E a hipótese do nada para além da morte. Duas hipóteses. Duas apostas. Duas opostas..., apostas! Mas a primeira, se perder, não conhece a derrota; e a segunda, se ganhar, não conhece a vitória. Qual a melhor?
Desculpem, mas eu acho que todos os verdadeiros poetas deviam ser cristãos. Pois o que é um poeta? Alguém capaz, alguém especialmente capaz, de acreditar no impossível. Alguém capaz de duvidar de tudo, menos do impossível. Ora o impossível por excelência, o impossível dos impossíveis: eis a base do cristianismo: o Verbo fazer-se carne; Deus fazer-se homem. Sim, o Evangelho devia ser pregado, em primeiro lugar, aos autênticos eleitos..., aos autênticos poetas... E só depois, quando estes o recusassem, (como de facto muitos o recusam), à outra gente, às outras gentes: aos gentios, aos outros homens... A nós: os cegos, os coxos, os pobres, os inválidos...
Revolta-me a perspectiva de um fim do mundo provavelmente próximo devido ao benemérito avanço da Civilização; devido ao abençoado requinte da Técnica. Só bombas atómicas já as há fabricadas e armazenadas, prontinhas para consumo, em número acima, muito acima do necessário para aniquilar toda a vida, vegetal, animal e humana, sobre a face da Terra. E indigna-me, confesso, pelo menos muitas vezes indigna-me, pensar que o Homem se suicida; pensar que o Planeta qualquer dia rebenta. Outras vezes, porém, também confesso: quase que estou como certa velhota minha vizinha. Mlnha vizinha..., e muito beata... Essa velhota (muito beata..., e minha vizinha...) quando lhe falam na supremamente angustiante, horrível, trágica, super-trágica hipótese de se acabar o Mundo, encolhe os ombros, e faz apenas este comentário: Não se acaba grande coisa.
Hegel disse: Eu vi Napoleão a cavalo: eu vi o Espírito a cavalo. Là-dessus, o cavalo do Napoleão, a besta do Napoleão menos mentira, se retorquira: Viu-se o Hegel a pé: viu-se o Espírito à pata.
Porque será que Francisco de Assis, explicando aos animais, às plantas e às pedras a doutrina cristã, constitui uma figura de mestre sublime, e o filósofo Hegel, se explicasse aos animais, às plantas ou às pedras, que todo o real é racional, faria uma figura de parvo ridículo?
Das provas da existência de Deus, a melhor..., é documental. Um argumento..., documento! Documento? Fac-simile. Fotocópia! Fotocópia?! Fotocópia..., de Deus! Hein?! Fotocópia de Deus?! Perfeita! E autenticada! Autenticada?! Com selos e tudo. Com selos e tudo?! Com estigmas e tudo...
Discutem os teólogos se uma coisa que S. Francisco fez, no início da sua carreira de santo, foi pecado ou não. Essa coisa foi: agarrar no dinheiro, no rico dinheiro de Pedro Bernardão, e atirá-lo (ao dinheiro...) pela janela fora. Eu não sou teólogo; eu sou literato. Eu acho que S. Francisco errou, pecou..., gramaticalmente; acertou..., estilisticamente». In Vicente Sanches, Van Gogh e Sétimos Aforismos, edição numerada com nº 000051, Gráfico de S. José, Castelo Branco, 1990.

Cortesia de G S.José/JDACT

A Filha do Barão. Célia C. Loureiro. «Mariana torcia desde já o nariz a esse mesmo cheiro; ao do couro dos arreios e ao odor intenso dos cavalos em esforço. O pai sabia que detestava sentir-se enjaulada, mas, sabendo-a apenas com catorze anos, quis que desse algum valor à aventura»

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1805 - 1806
«(…) Sentiria também saudade de ter à vista os vendedores de mel, as aguadeiras, os homens que percorriam a Praça do Comércio com fusos e rocas, os sapateiros nas esquinas, os ferreiros a equipar cavalos para viagens mais longas, os vendedores de tripas. Havia ainda a emoção dos sobressaltos à porra da Casa da Gazeta, no Terreiro, as bostas das bestas espalhadas pelo chão, quase como armadilhas a que deveriam esquivar-se quando caminhavam com os seus elegantes sapatinhos rasos, e a necessidade de se acautelar nas esquinas, pois nem todos os cocheiros eram prudentes ao dobrar um edifício. Geralmente, dona Sofia e Nuna, a criada sexagenária da casa, não a deixavam aproximar-se daquele género de gente. Mariana, impressionada com os seus odores e pés descalços, não tinha interesse, fosse como fosse, em aproximar-se. Falavam demasiado alto, por vezes com sotaques estranhos que se afastavam daquilo que era o círculo culto da cidade e, numa única frase, tropeçavam incontáveis vezes no português correcto que a régua de madeira do professor Manuel Jardim a ajudara a interiorizar. Não se deixava tentar pelos caramelos e desviava o olhar dos rosários de madeira tosca que tentavam impingir-lhe quando atravessava as galerias da Praça em direcção ao edifício onde o pai se debruçava diariamente sobre os livros de contas. Só se detinha nos meses logo após o Verão, em que as castanhas a assar no chão enchiam os ares da capital do Império com uma fragrância irresistível.
Dona Sofia aperrou melhor o xaile de veludo verde-seco, preso com alfinetes sobre a gola rendada do vestido que trajava para a viagem. O facto de ainda não chuviscar, nessa madrugada de meados de Novembro, não significava que, a qualquer momento, a lama e os ventos não fossem desestabilizar a berlinda no longo caminho que tinham pela frente. Dona Sofia despedira-se do marido com um beijo terno no rosto, suficientemente discreta para que as três criadas e a mestra que as acompanhariam não se sentissem tentadas a dirigir o olhar aos seus senhores. Continuaram a carregar baús de porcelana da dinastia Qianlong, do século ultrapassado, embalada em jornais, bem como linhos, lãs e cobertores, a fim de enfrentarem o Inverno no Douro. As suas salvas de prata, os seus aquários de porcelana, potes, chaleiras, bacias e candelabros apinhavam-se em monos maciços que seguiriam em chocalho constante ao longo de toda a viagem. Sem mencionar os baús com uma enorme quantidade de vestidos da baronesa e da menina, que tinham sido aferrados com correias de couro à rectaguarda da berlinda, assim como ao topo da carruagem dos serventes.
Mariana torcia desde já o nariz a esse mesmo cheiro; ao do couro dos arreios e ao odor intenso dos cavalos em esforço. O pai sabia que detestava sentir-se enjaulada, mas, sabendo-a apenas com catorze anos, quis que desse algum valor à aventura. Sem a aprovação de dona Sofia, que não gostava de ser ignorada, instigou a filha a descer novamente da berlinda. Mariana fê-lo de imediato, animada pela perspectiva de que, talvez, o pai tivesse mudado de ideias. O pai, barão João, apoiou-a sob o braço, ajeitou-lhe melhor o capuz preto que a protegia e encaminhou-a para a esquina, a cinquenta passos de distância da berlinda e da carruagem que eram carregadas. O dia mal despontara e, por conseguinte, estava suficientemente escuro em Lisboa para que um pai e uma filha pudessem trocar algum carinho com discrição. O barão acariciou-lhe o rosto com a mão, onde a tinta da pena deixara manchas difíceis de disfarçar, e sorriu-lhe já com saudade. Levou o lenço à boca ao ser acometido por um ataque de tosse, para evitar a transmissão da doença, e Mariana entristeceu ante aquele gesto que pretendia protegê-la. O seu pai era um nobre tão digno, envolto numa capa de lã escura, que ela não resistiu ao impulso de o cingir pela cintura. Era um homem na flor da idade e de constituição forte, que por um instante a apertou sem dificuldade contra o peito. Depois, evocando uma vez mais a doença, afastou-a com firmeza.
Fitou os seus olhos redondos, escuros como a noite no campo, e a inocência que as longas pestanas lhes emprestavam. O vulto de velas e embarcações ao longe no Tejo pareceu distraí-lo dessa promessa de beleza e feminilidade, mas Mariana soube que a fitava porque lhe era difícil prender o olhar no seu durante mais tempo. A despedida doía a ambos. Procurou-lhe a mão e apertou-lha, descobrindo-lha trémula. Não vos preocupeis, paizinho. Eu cuido da mãe. Sabeis que a vossa mãe é uma criatura difícil, filha. Tende paciência com ela. Afagou-lhe os ombros, com o olhar posto no assador de castanhas». In Célia Correia Loureiro, A Filha do Barão, 1809, Marcador Editora, 2013/2014, ISBN 978-989-754-039-4.

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