quinta-feira, 21 de maio de 2015

O Manuscrito do Santo Sepulcro. Jacques Neirynck. «Depois de duas horas de enervamento, tendo já recuperado as suas bagagens, aproximou-se da alfândega, não sem inquietude: estaria alguém do outro lado? Paolo era tão distraído e inconsequente»

Cortesia de wikipedia e jdact

O sudário intemporal
«(…) Theo substituiu depois o método tradicional de datação pelo carbono 14, utilizando um processo bastante mais destro, o espectroscópio de massa, que permitia contar realmente os átomos um por um. Por este método, tinha estimado a data das carótidas de gelo, retiradas de dentro da calota da Gronelândia, com uma excelência de precisão que atingia os cem mil anos. Esta última técnica de medição tornara-o célebre e, mais tarde ou mais cedo, valer-lhe-ia um Prémio Nobel da Física. Com uma serenidade imperturbável, esperava esta distinção, por si próprio considerada como bem merecida. Assim, por três vezes sucessivas, lançou-se ao assalto do tempo e, por três vezes, superou o desafio. Hoje, o sentimento que o assola é o de que lhe está destinado um desafio ainda mais importante: a investigação da eternidade, que não é tempo indefinidamente prolongado, mas o contrário, a ausência de tempo. Como medir uma grandeza inexistente? Começava a ter uma ideia a tal respeito. Consultou o relógio. Esperava há um quarto de hora. Era o bastante para poder censurar o seu irmão e a sua irmã pelo atraso. Era inútil amesquinharem-se com desculpas. Na verdade, faziam-no perder o seu tempo. Os nervos apoderavam-se dele. Pouco faltava para que bocejasse. Passeou-se pela galeria das fotografias e identificou Burt Lancaster, Gary Cooper e Clark Gable, apesar da juventude deles. Havia uma fotografia recente, colorida, de Mikhail Gorbachev. Foi aos lavabos e deixou correr a água que saía da torneira sobre as mãos húmidas. Regressou ao seu lugar, amaldiçoando-se por não ter levado consigo algo para ler, nem que fosse um jornal. Pôs-se a suspirar e a analisar a frequência e a amplitude dos seus suspiros. Estava realmente enfadado. O tempo parecia alongar-se. Só então reparou que estava calor e a atmosfera era pesada. A tempestade que ameaçava, desde a véspera, ainda não se tinha manifestado verdadeiramente. Alguns pingos de chuva tinham caído, coagulando no solo a poeira das ruas. Mas a atmosfera continuava empestada, mistura perversa de escape, de partículas fedorentas e de odores humanos. Através da cortina agitada pelo vento outonal, volvia os olhos para o exterior. Um táxi abeirou-se do passeio. Colombe descia e debruçava-se sobre o condutor, não para lhe pagar, mas para o beijar. Após um verdadeiro percurso de resistente, Colombe tinha desembarcado no aeroporto de Fiumicino, cerca das dez horas da manhã. O avião, que deveria tê-la transportado de São Francisco a Nova Iorque, não levantou voo. No último minuto, transferiram-na para outro voo. As bagagens não tinham seguido. Por essa razão, tinha tido problemas com a segurança no Aeroporto Kennedy. Os nervos não a deixaram dormir e, ao desembarcar em Roma, tomou conhecimento de que os bagageiros e os condutores de táxi estavam em greve. Decididamente, o mundo da tecnologia também sofria de incoerência: os técnicos eram capazes de construir aviões que atravessavam o Atlântico sem cair, mas não conseguiam organizar os transportes de Fiumicino a Roma. À chegada, não demorou a sufocar na atmosfera húmida e no ar poluído. A arquitectura sinistra do aeroporto evocava as inquietudes espirituais do arquitecto, sofredor sem dúvida de neurastenia incurável, própria dos povos do sol. Colombe teve a impressão de penetrar como um anjo num quadro de De Chirico e de não mais poder libertar-se. Sentia-se indisposta: Paolo já tinha chegado? Colombe teria gostado de viver estes momentos de expectativa sem ter de se ocupar dos registos de bagagens. Mas no mundo em que via, assoberbado pelos problemas de gestão, já não havia lugar para a tragédia ou para a comédia. Depois de duas horas de enervamento, tendo já recuperado as suas bagagens, aproximou-se da alfândega, não sem inquietude: estaria alguém do outro lado? Paolo era tão distraído e inconsequente. Como amar os que são incapazes de amar? Se ele não estivesse à sua espera, tinham mesmo de se zangar. Se ela se zangasse, ele mostraria vontade de a deixar. Ela cederia. Paolo ganharia um acréscimo de ascendente cometendo uma infracção. Com ele, a única regra do jogo era: o prémio cabe ao batoteiro.
Seguiu pela porta verde, que dizia: Nada a declarar. Sob esta inscrição, percebeu, de repente, que já não amava Paolo, que nunca o havia amado, que se entregava à comédia da ânsia amorosa para fingir uma afeição que já não sentia. Paolo resumia-se a um corpo de que ela se sentia faminta. Nada mais havia de sublime na sua condescendência, para além disto. Não, na verdade, nada tinha a declarar. Com efeito, ali estava ele, tranquilo, bronzeado, o olhar distante e logo depois iluminado, apercebendo-se dela com uma fingida paixão, como faziam os maus actores da Cinecittà nos seus filmes históricos. O que havia de mais irritante nos seus estratagemas era o exagero da sua afectação permanente para melhor poder dissimular. Onde se escondia a sua sinceridade, se é que ela existia, em que região profunda do seu subconsciente? Só os sentimentos confusos afloravam, aqueles que os outros dissimulavam e que escondiam ainda mais fundo, ao simularem mascará-los. Colombe parecia uma cebola: ao expurgar uma ilusão, descobria uma outra ilusão, que escondia uma outra ainda». In Jacques Neirynck, Le manuscrit du Saint-Sépulcre, O Manuscrito do Santo Sepulcro, Pocket, 2006, ISBN 9878-226-615-536-6.

Cortesia de Pocket/JDACT