sexta-feira, 15 de maio de 2015

Crimes Imperfeitos. Álvaro Guerra. «… passa de Vila Velha para as metrópoles de várias latitudes, reflectindo uma peculiar visão de um mundo em que avultam as ruínas da utopia…»

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«A casa do meu passado minguou até ao tamanho do meu coração. Está condenada ao camartelo, ao golpe de misericórdia nas ruínas. Não quero vê-la, apenas senti-la no pulsar do coração do seu tamanho. E irei à vida, depois da morte me passar na alma, sobre o lamento dos equívocos e das recordações. Morreu a tia Judite. Escrevo estas palavras para acreditar nelas. O homem pode, afinal, suportar tudo, até à morte. Até à morte. E posto que tudo a pó se reduz, veremos se a coragem me não falta para a pó reduzir alguns dos vestígios materiais do tempo. Restarão certas palavras e a memória pura, precursora do limbo. Mas a liberdade absoluta é uma ilusão e os resíduos do passado uma violência apaixonada, escolhos do futuro, pesados baús que me deixam as mãos manchadas de poeira, ao abri-los. Neste sótão da minha infância, no casarão decrépito e condenado, as recordações são mais vivas que as fotografias dos álbuns de contornos muito esbatidos. A capeline branca que a tia Judite ostenta, no grupo à porta da igreja (o casamento da irmã), está naquela caixa de chapéus abandonada sobre uma cadeira império, sem fundo. O seu sorriso luminoso é o que se destaca dentro do Opel descapotável dos anos 30, com o meu avô ao volante, ainda de guarda-pó. O meu pai, de fato de linho e chapéu de palha, sentado numa cadeira de lona junto da barraca da praia da Ericeira, é apenas um comparsa de Judite, de pé, com o vestido claro de decote quadrado, colado ao corpo pelo vento, a fronte liberta dos cabelos atirados para trás, um braço levantado, horizontal, apontando para o mar. Procuro no coração cansado outras paixões e os meus olhos despedem-se dessa imagem que não se apagará jamais. E porque não reconhecer que busco mais os símbolos que o sentido dessa existência inicial que me antecedeu e esperou, a mim, outro e de outro modo? O filho que ela não teve? O amante que partiu? De tudo isto tenho vaga consciência nos largos minutos em que fixo a silhueta esguia de Judite quando jovem, levemente inclinada para a criança cuja mão desaparece na sua, que idade eu teria? Um ano? Dois anos? A minha mãe também ali figura, desamparada, braços ligeiramente abertos, olhos fixos no meu afastamento titubeante. E viajo mais para trás, para os longínquos mistérios da sua infância que anunciava o afectuoso e canibalesco cerco da família, pais, irmãos, imobilizados num canapé de verga, ao lado esquerdo a floreira, o vaso de porcelana com a planta de folhas espalmadas, e o seu laçarote parecendo maior que o natural, supostamente branco sob a sépia que congela um tempo indecifrável, ainda, e que antecipava já a gravidade da boca e a profundidade dos olhos negros.
Ao sarar as minhas feridas de guerra, quando reencontrei os lençóis de linho, o cheiro da alfazema e da cera nos velhos soalhos, o seu perfume habitava os meus sonhos de sobrevivente e quando a manhã a trazia ao meu quarto, com a luz do sol filtrada pelas cortinas de renda, eu acreditava em tudo o que estava à minha frente e nos outros sonhos que partilhávamos com o mundo da esperança. Estes antigos retratos, estes móveis desconjuntados, estas malas sem fundo arrumadas para nenhuma viagem, este espólio, estes despojos, não os quero. Só não posso fugir a este doloroso esforço da memória para voltar a sentir a presença viva que estes restos desmentem. Amar o impossível, como sempre... Amor que mata e ressuscita e aflora a pele do meu rosto, os meus lábios, sentidos despertos para todo o sinal de reconstituição fantástica que nasça do contacto com outro corpo. Vai-se-me o resto da juventude que só ela salvava na obstinação da liberdade que a manteve viva. Que outra fantasia poderá inspirar os meus desejos, encorajar os meus combates, celebrar as minhas incertas vitórias? Chegava-me sabê-la viva. Bastará, agora lembrá-la? Todo o peso do absurdo cai sobre os meus ombros, enquanto as minhas mãos mergulham nas arcas do tempo, no meio da noite gelada que invade o sótão do meu passado. E outros mistérios, os que Judite guardou. No secretismo do seu corpo. Meias palavras para lá de portas entreabertas». In Álvaro Guerra, Crimes Imperfeitos, Edições o Jornal, colecção Dias de Prosa, 1990, Depósito legal nº 40709.

Cortesia OJornal/JDACT