sábado, 30 de maio de 2015

As Obras do Diabinho da Mão Furada. António José Silva. «O Diabinho, depois de dar à bruxa o referido castigo e de lhe ordenar que durante quinze dias não fizesse signos salomónicos (de Salomão, um dos reis de Israel. signos salomónicos era uma forma preconceituosa de dizer que os rituais judaicos da cabala eram bruxarias)…»

jdact e wikipedia

«(…) Eu vos agradeço, amigas minhas, respondeu o Diabinho, esse trato e adoração que me fazeis. Podeis relatar as maldades que tendes executado em virtude do favor que vos dou. Levantando-se então uma das bruxas com humilde submissão, disse ao Diabinho: eu, comissário de lúcifer, venho esta noite de chupar o sangue de um menino que não tinha mais que dois dias desde que foi baptizado, e deixei-o sem vida. Ao que respondeu o Diabinho dando um formidável e horrendo grito, dizendo: oh monstro indigno do meu favor e do título de bruxa, merecias, por tal obra que fizestes, que te sepultasse nas profundezas do inferno, em corpo e alma, para não veres mais a luz do sol! Não era mais lícito tirasses a vida a esse menino, antes que se baptizasse? Os inocentes que em protecção divina matas, feminino Herodes, vão gozar da eterna glória! Para isso seria melhor que esse inocente vivesse até à idade em que pecasse, para que tivéssemos parte nele. Muito eu tentei, oh indignado senhor, respondeu a bruxa, por executar a minha maldade antes de ele se baptizar, mas, semeando os seus pais mostarda pelas casas, levantando os ferrolhos das portas e pondo espadas nuas nas entradas delas, mo impediram, que não sei que antipatia tem connosco a virtude destas coisas, que nos encontram com grande violência os nossos intentos. E quanto ao que me dizes que mais justo seria que vivesse aquele inocente até a idade em que pecasse, para nele teres parte, contenta-te pensando que se vivesse, poderia vir a ser um grande santo e, para além de se poder tornar alguém capaz de grande glória, poderia acontecer que com o seu exemplo reduzisse muitas almas a Deus e tirava-te das mãos as presas delas. Mas tu também tens a culpa da minha hidropisia de sangue humano, pois me fizeste ser uma insaciável sanguexuga dele. Oh inferno abreviado, respondeu o Diabinho. O feminino Herodes! Oh diabo dos diabos! Pois se aumentas com sangue que chupas aos inocentes baptizados, não te irás daqui, oh indigna da minha presença e dos meus favores, sem o merecido castigo!  E sem dizer mais nada, tomou um pau dos que o nosso soldado tinha posto no lume e moendo a bruxa a pancadas, torceu-lhe uma perna até esta ficar manca.
Admirado estava o soldado e perdido dos seus sentidos por ver aquele espectáculo e por haver gente baptizada que, para gozar dos favores do demónio, para sua eterna condenação, sofresse tal ignomínia. E maldizia no seu coração a sorte que ali o trouxera, onde se julgava em tanto perigo, vendo, segundo o seu parecer, o inferno em vida. Mas fiava no seu ânimo e coração que, encomendando-se interiormente a Deus, e mediante o Seu divino favor, iria escapar de tudo. O Diabinho, depois de dar à bruxa o referido castigo e de lhe ordenar que durante quinze dias não fizesse signos salomónicos (de Salomão, um dos reis de Israel. signos salomónicos era uma forma preconceituosa de dizer que os rituais judaicos da cabala eram bruxarias) nem o invocasse, sob pena de lhe tirar logo a vida e de lhe antecipar o inferno, onde eternamente beberia chumbo derretido, pelo sangue baptizado que chupara, mandou às companheiras que referissem o que tinham feito; ao que elas logo obedeceram, relatando tais enormidades e torpezas que o soldado, por lhe parecerem indignas de serem escritas, não fez delas lembranças. Depois de ouvi-las disse-lhes o Diabinho: vitória, minhas amigas! Vós, sim, sois merecedoras dos meus favores. Eu vos agradeço e graduo por superlativas bruxas; e, porque tenho o hóspede que ali vedes e é já tarde, podeis restituir-vos às vossas habitações. E elas, que até então não tinham reparado no soldado por se dirigirem somente ao Diabinho e por o soldado estar muito quieto, a um canto da casa, sem dizer nenhuma palavra, assim que o viram, transfiguram-se em gatos negros e saltaram por uma janela com horrendos miados. Assombrado estava o soldado e sem gota de sangue no corpo, porque todo lhe tinha acudido ao coração com o temor do que tinha visto e ouvido, parecendo-lhe ilusão do demónio o que julgava por realidade. Quando, desaparecendo as bruxas, disse-lhe o Diabinho: que te parecem aquelas minhas súbditas? O soldado respondeu-lhe: estou admirado, atónito e fora de mim por ver que há gente tão bruta, tão cega e tão irracional que, conhecendo-te a ti e aos teus enganos, seja capaz de executar maldades contra seu próximo e viver quatro dias licenciosamente à custa do desprezo com que as tratas, mais o inferno, aonde sabem que hão de penar certamente. Oh, miséria grande! Oh, execrável maldade! Eu confesso-te que vivia enganado, porque, por mais que ouvia dizer que havia bruxas, não o podia crer e, que com o teu favor faziam grandes malefícios e para isso te comunicavam, não me podia persuadir a que assim fosse, imaginando que não passava de superstições embusteiras. Mas agora que vi com os meus olhos o contrário do que imaginava, se não foi ilusão do teu engano, fico desenganado, que coração sem arte não pensa em maldade.
Quantos desses enganos há no mundo!, replicou o Diabinho. Mal sabes o que corre nele e quantos passam na praça pública por aprimorados e virtuosos, que a mim estão entregues. Con su pan se lo coman, (que comam o seu próprio pão), respondeu o soldado, que eu não lhes tenho inveja e espero que o seu S. Martinho lhes venha a tempo do arrependimento pois quem tempo tem e tempo espera, tempo é que o demo lhe leva, e que quem mal vive, mal morre! Mais pareces pregador que soldado, replicou o Diabinho, contra o hábito da tua profissão, porque a maioria dos soldados, se não são diabos, são a pele do diabo na blasfémia e liberdade de consciência com que executam os seus vícios». In António José Silva (1705-1739), As Obras do Diabinho da Mão Furada, 1861, A Primeira Novela Sobrenatural Portuguesa, Luso Livros, Nova forma de Ler, ISBN 978-989-817-496-3.

Cortesia de LLivros/JDACT