segunda-feira, 25 de maio de 2015

A Rapariga que Roubava Livros. Markus Zusak. «Esta história decorre em Molching, um pequeno subúrbio de Munique, em 1939, durante a II Guerra Mundial. Na rua Himmel, vive-se um dia a dia difícil, a escassez de tudo o que é necessário à vida instala-se e os bombardeamentos…»

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Coragem nascida das palavras
«Aquela última vez. Aquele céu vermelho... Como é que uma rapariga que rouba livros acaba ajoelhada e a uivar, rodeada por uma pilha de ridículo entulho, gordurento e queimado, engendrado pelo homem? Anos antes, o começo foi neve. Chegara a hora. Para um.
Um momento espectacularmente trágico. Um comboio avançava velozmente. Ia apinhado de humanos. Na terceira carruagem morreu um rapaz de seis anos. A rapariga que roubava livros e o irmão viajavam para Munique, onde em breve seriam entregues a pais de acolhimento. Sabemos agora, é claro, que o rapaz não chegou lá. Como aconteceu. Houve um intenso estertor de tosse, um estertor quase inspirado e logo após, nada. Quando a tosse cessou, não havia nada senão o nada da vida a continuar com um arrastar de pés, ou um espasmo quase silencioso. Uma subitaneidade abriu então caminho para os seus lábios, que apresentavam uma cor castanha corroída e a pelar, como tinta velha. A precisar desesperadamente de retoques. A mãe deles dormia. Eu entrei no comboio. Os meus pés percorreram a coxia apinhada e a palma da minha mão pousou na boca dele num ápice. Ninguém reparou. O comboio continuou a galopar. Excepto a rapariga. Com um olho aberto e o outro ainda num sonho, a rapariga que roubava livros, também conhecida por Liesel Meminger, pôde ver sem sombra de dúvida que o seu irmão mais novo, Werner, se achava agora inclinado e morto. Os seus olhos azuis fixavam o chão. Sem ver nada.
Antes de acordar, a rapariga que roubava livros estava a sonhar com o maldito Fu…, Adolf Hitler. No sonho, ela assistia a um comício em que ele discursava, e fitava o risco cor de crânio do cabelo dele e o quadrado perfeito do seu bigode. Ela escutava satisfeita a torrente de palavras que se derramavam da sua boca. As suas frases reluziam na claridade. Num momento mais calmo, ele chegou mesmo a agachar-se e a sorrir para ela. Ainda não aprendera a falar muito bem, nem mesmo a ler, pois raramente frequentara a escola. A razão para isso, descobri-la-ia ela a seu tempo. Justamente quando o maldito Fu… ia responder, ela acordou. Era Janeiro de 1939. Ela tinha nove anos, quase dez. O irmão estava morto.
Um olho aberto. Outro ainda num sonho. Seria melhor ter tido um sonho completo, penso eu, mas realmente não tenho controlo sobre isso. O segundo olho acordou sobressaltado e ela apanhou-me, não há a menor dúvida. Foi exactamente no instante em que eu me ajoelhei e extraí a alma dele, segurando-a molemente nos meus braços inchados. Ele reanimou-se pouco depois, mas, quando lhe peguei inicialmente, o espírito do rapaz estava mole e frio, como um gelado. Começou a derreter-se nos meus braços. Depois a reanimar-se completamente. A sarar. Para Liesel, havia a rigidez de movimentos confinados e a investida hesitante dos pensamentos. Isto não está a acontecer. Isto não está a acontecer. E as tremuras. Por que é que eles tremem sempre? Sim, eu sei, eu sei, presumo que tem algo a ver com instinto. Para deter o fluxo da verdade. Nesse instante o coração dela estava escorregadio e quente, e ruidoso, tão ruidoso, tão ruidoso. Estupidamente, eu fiquei. E observei.
A seguir, a mãe. Ela acordou-a com a mesma tremura agitada. Se não conseguem imaginar, pensem num silêncio inepto. Pensem em pedaços de desespero flutuante. E em morrer afogado num comboio. A neve tombava incessantemente há já algum tempo, e a composição para Munique foi obrigada a parar devido a deficiências nos carris. Havia uma mulher a gemer. A seu lado encontrava-se uma rapariga entorpecida. Em pânico, a mulher abriu a porta. Desceu para a neve, abraçando o pequeno corpo. O que podia a rapariga fazer senão segui-la?
Como já foram informados, havia igualmente dois guardas no comboio. Eles discutiram e altercaram acerca do que fazer. A situação era desagradável, no mínimo. Foi finalmente decidido que todos três deviam ser levados para a próxima cidade e deixados aí para as coisas serem resolvidas. Desta vez, o comboio foi a manquejar através do campo coberto de neve. Vacilou e estacou. Eles desceram para a plataforma, a mãe com o corpo nos braços. Permaneceram ali de pé. O rapaz começava a ficar pesado. Liesel não fazia a menor ideia de onde se encontrava. Estava tudo branco e enquanto permaneceram na estação, ela apenas podia fixar as letras desbotadas do letreiro à sua frente. Para Liesel, a cidade não tinha nome, e foi aí que, dois dias depois, enterraram o seu irmão, Werner. As testemunhas incluíam um padre e dois coveiros a tiritar.
Uma observação. Um par de guardas ferroviários. Um par de coveiros. Chegada a altura, um deles deu as ordens. O outro fez o que lhe mandavam. A questão é, e se o outro é muito mais do que um? Erros, erros, é só do que pareço ser capaz em certas alturas. Durante dois dias tratei dos meus assuntos. Percorri o globo como sempre, entregando almas ao tapete rolante da eternidade. Vi-as rolar passivamente. Por várias vezes disse a mim mesma que devia manter-me bem longe do funeral do irmão de Liesel. Não segui o meu conselho. A quilómetros de distância, ao aproximar-me, já conseguia avistar o pequeno grupo de humanos enregelados, de pé no meio do deserto de neve. O cemitério recebeu-me como amigo, e em breve os alcancei. Olhei para baixo. À esquerda de Liesel, os coveiros esfregavam as mãos e lamentavam-se por causa da neve e das presentes condições para cavar. É, tão difícil furar tanto gelo, e assim por diante. Um deles não podia ter mais de catorze anos. Um aprendiz. Quando se foi embora, após meia dúzia de passos, um livro preto caiu-lhe do bolso do casaco sem ele dar por isso. Alguns minutos mais tarde, a mãe de Liesel começou a afastar-se com o padre. Estava a agradecer-lhe os serviços prestados na cerimónia. A rapariga, contudo, ficou. Os seus joelhos penetraram no solo. O seu momento chegara. Ainda descrente, começou a cavar. Ele não podia estar morto. Ele não podia estar morro. Ele não podia...» In Markus Zusak, 2005, A Rapariga que Roubava Livros, tradução de Manuela Madureira, Editorial Presença, Lisboa, 2014, ISBN 978-972-233-907-0.

Cortesia de EPresença/JDACT