quinta-feira, 7 de maio de 2015

A Ideia de Natureza no século XVIII em Portugal. Pedro Calafate. «Aí nos reenvia para uma leitura da natureza que, integrando todas as conquistas da filosofia natural, quebra, no entanto, os limites do finito e do fragmentário, pela integração da natureza física num mais vasto edifício»

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Ciência e Religião. Natureza e Símbolo
«(…) É neste quadro, que teremos de entender a prova pela harmonia e pelas maravilhas da natureza, a qual está bem longe de se constituir em prova puramente física. Assim, vamos vê-lo mais adiante, as chamadas provas físicas, tal como nos aparecerão comummente designadas nos textos dos nossos teóricos setecentistas, são, em rigor de termos, provas físico-metafisicas, porque o Universo é contingente, não apenas na ordem do devir mas, como dissemos, na ordem da existência: o Deus-relojoeiro não se entende apenas na ordem do fazer mas na do criar. Um dos aspectos que, neste quadro, importa sublinhar é que a noção de contingência e a consequente afirmação de uma dependência, não constitui apenas um factor de negatividade, porque, ao sublinhar a relação que se estabelece entre as criaturas e a sua Causa, está-se, ao mesmo tempo, a afirmar, tanto quanto é possível, a dignidade do mundo contingente. Este aspecto foi particularmente vincado pela filosofia medieval, posterior ao século XII, nomeadamente pela escolástica tomista pois,como nos diz Comélio Fabro, a relação das criaturas a Deus, em São Tomás, opera segundo um plano de analogia no sentido em que, escreve, [...] as perfeições pertencem a Deus por essência, ao passo que as criaturas possuem-nas somente por participação [...] a estrutura do ens per participationem apresenta, no tomismo, o paradoxo da infinita distância de Deus, esse per essentiam, juntamente com a pertença ou absoluta dependência da criatura relativamente a Deus, a dependentia Deum. Existe, pois, uma distância infinita das criaturas a Deus, mas não existe nenhuma distância de Deus às criaturas. Todas as criaturas são contingentes, e a relação destas à causa simultaneamente criadora, eficiente e final far-se-á no plano preciso da participação e da analogia.
É este aprofundar do tema platónico da participação, enriquecido pela profunda apetência racional do tomismo, que permite actualizar essa possibilidade de, pela natureza, aceder a Deus, num plano em que o mundo contingente se não deprecia, mas, pelo contrário, surge plenamente valorizado na sua legalidade própria, ao exigir processos de investigação racional. Evidentemente, não será demais sublinhá-lo, os processos racionais referidos estão ainda longe de ser os da ciência moderna, mas o que importa relevar é essa valorização, para um determinado modelo de racionalidade, da legalidade própria da natureza, a valorização de uma imanência que, no entanto, se não resolve num imanentismo, antes, pelo contrário, a concilia com um apelo profundo de transcendência, sentido este último como uma vocação essencial do espírito, naquele sentido que E. Gilson considerava poder dar corpo à atitude do filósofo cristão: o mundo físico em que vivemos, oferece ao pensamento do cristão uma espécie de verso do seu próprio fisicismo, uma outra face onde tudo o que, por um lado, se lê em termos de forças, energias ou leis, se lê, por outro lado, em termos de participação no ser divino e de analogias.
Desse projecto nos dará conta, já na segunda metade do século XVIII, um dos autores que, juntamente com Derham e Nieuwentyt, se afirmará como das mais importantes figuras da física teológica na Europa das luzes. Referimo-nos ao Espectáculo da Natureza do abade Pluche. Aí nos reenvia para uma leitura da natureza que, integrando todas as conquistas da filosofia natural, quebra, no entanto, os limites do finito e do fragmentário, pela integração da natureza física num mais vasto edifício, que nos fala de um Deus criador e dos seus atributos. Este texto resume, de forma tão sintética quanto clara, a atitude de vastas camadas de intelectuais das Luzes a respeito da natureza, atitude que se nos afigura dominante em Portugal, embora não exclusiva. É esta concepção da natureza como linguagem, que abre portas à consideração simbólica e permite assegurar uma modalidade fundamental do acordo entre Natureza, Homem e Deus, a qual se revela acessível à razão natural, pois, como escreve de novo o abade Pluche, nessa que foi das mais lidas obras em todo o século XVIII europeu. A oposição entre razão e religião não faz sentido para Pluche, não são domínios exteriores um ao outro, como o não são para Vemei, Genovesi, Derham, Cenáculo ou Teodoro de Almeida». In Pedro Calafate, A Ideia de Natureza no século XVIII em Portugal (1740-1800), Estudos Gerais, Série Universitária, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1994, ISBN 972-27-0700-0.

Cortesia INCM/JDACT