segunda-feira, 20 de abril de 2015

Rã no Pântano António A. Santos. «É isso, tu andas agora de gravata... Uma gravata nojenta, ainda por cima, Quantas campanhas fez ela no cachaço dum burguês? Que rico precedente para a tua cerviz!»

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A Gavroche
«Porque se chamava ele Gavroche? Provavelmente porque seu pai se chamava Jondrette. … Não tem camisas, nem sapatos, nem tecto que o abrigue; é como as moscas que não têm nada disto… Tem vestidas umas calças velhas de seu pai que se lhe metem por debaixo dos calcanhares, na cabeça um velho chapéu de algum outro seu pai... Segura as calças com um só suspensório... Corre, pede, espreita, perde tempo, queima cachimbos, pragueja como um danado, frequenta a taberna, conhece os ladrões, trata por tu as meretrizes, fala gíria, canta cantigas obcenas e não abriga maldade alguma no coração. É que tem na alma umo pérola; e as pérolas não se dissolvem na lama». In Victor Hugo

Meu caro Gavroche:
«Mando-te esta carta como quem solta um pombo. Não sabes ler, bem sei. Fugiste da escola, se algum a vez lá deste entrada. Preferiste o saber da rua, o saber que vem ter connosco por seu passo e que tem olhos de gente, cara de gente e voz de gente, Não és o único filósofo a proceder assim. Outros houve, com barbas de quilómetro. Ainda assim, solto o meu pombo no ar. Pois não é verdade que tu sabes o que desconheces? Também não lês os discursos dos ministros e fazes deles o teu pregão. Também não entendes a mexeriquice dos jornais e fazes dela a tua indústria. Não te venho pedir nenhum favor, descansa. Sei que costumas exigi-los e eu usaria os teus processos. Tampouco venho dizer-te com falinhas mansas Gavroche, deves voltar à escola, tens que ser um homem. Escolheste a tua escola e homem já tu és. Não se trata disso. Mas dizem-me agora que andas para aí armado em parvo, meio calado, meio triste. Trata-se exactamente de tirar isso a limpo. Triste, não, Gavroche! Tudo menos isso! Pois quem há-de ser alegre? Quererás que a alegria esqueça e fique tudo com cara de fantasma? Não foi um nem dois que mo disseram. A notícia não descansa um minuto em cada boca. A princípio, não acreditei. Podia lá ser, o Gavroche. Pois não eras tu estóico até à miséria, sábio até à desgraça consciente, que por isso mesmo te rebentava de riso?
Mas um dia eu vi chegar um barco e tu não estavas, Gavroche. Tiveste falta no cais. Quem vai dizer aos marujos onde moram as garotas? Desculparás, mas comecei a convencer-me. A dúvida, nem os amigos poupa. Foi então que reparei em ti, E era certo, Gavroche! Tu andas mesmo triste! Onde diabo trazes tu os olhos, que parecem duas estrelas mortas? Onde arranjaste esses ombros que nem parecem teus? Não pode ser, caramba! Andas pálido, metido dentro de ti, não corres, não gritas, não fazes negaças, não jogas a bulha,  não assobias com aquele teu ar rapioqueiro de profissional vadio... Até feio andas, raios te partam! Para quê essa melena tombada sobre a orelha? Achas bonito ou viste no cinema? Começas por amansar os cabelos, depois tu próprio abrandas. O mal é começar, já sabes. Ora põe-me esse pêlo em liberdade ! Vento nele, Gavroche, vento fresquinho a cheirar a maresia e a viagens... Ou andas tu embeiçado aí por alguns olhos? É isso, tu andas agora de gravata... Uma gravata nojenta, ainda por cima, Quantas campanhas fez ela no cachaço dum burguês? Que rico precedente para a tua cerviz! Diz-me: também pões água de cheiro no verso das orelhas? Gavroche: tu sabes que sou teu amigo, Nunca esperei ter que lembrar-to agora, Mas isso de namoros não te fica bem. A paixão é uma cadeia, meu amigo, onde vão cumprir pena maior os lamechas que se inclinam pelo amor egoísta duma só pessoa. Dois olhos no lugar do mundo. Achas bonito isso? Não; não me venhas dizer que bonita é ela, prendada e boa menina. Dize: quantas boas meninas ficam sem o teu amor se a uma o deres apenas? O teu coração é grande demais para se encher com sorrisos bonitos, uma voz de sonho e um bom par de pernas! E que fizeste de toda essa gente amiga, conhecida ou apenas delirada, que morava lá dentro? Puseste na rua, simplesmente?». In António A. Santos, Rã no Pântano, Oficinas Gráficas Henry Gris, Lisboa, 1959.

Cortesia de IGHenry Gris/JDACT