quarta-feira, 1 de abril de 2015

O Segredo da Flor do Ouro. Jung e Wilhelm. «Disse um antigo: “Se o homem errado usar o meio correcto, o meio correcto actuará de modo errado”. Este provérbio chinês, infelizmente muito verdadeiro, contrapõe-se drasticamente à nossa crença no método ‘correcto’…»

Um vajra-mandala lamaico 
Cortesia de wikipedia

O motivo porque é difícil o Ocidental compreender o Oriente
«Como ocidental, e sentindo do mesmo modo específico, experimentei a mais profunda estranheza diante do texto chinês do qual se trata. É verdade que um certo conhecimento das religiões e filosofias orientais auxiliara de certo modo o meu intelecto e a minha intuição, a fim de compreendê-lo, assim como entendo os paradoxos das concepções religiosas primitivas em termos de etnologia ou de religião comparada. Este é o modo ocidental de ocultar o próprio coração sob o manto da chamada compreensão científica. E o fazemos, em parte devido à misérable vanité des savants, que receia e rejeita com terror qualquer sinal de simpatia viva, e em parte porque uma compreensão simpática pode transformar o contacto com o espírito estrangeiro numa experiência que deve ser levada a sério. A nossa objectividade científica reservaria este texto para a perspicácia filológica dos sinólogos, preservando-o cuidadosamente de qualquer outra interpretação. Mas Wilhelm penetrou demais no segredo e na misteriosa vivência da sabedoria chinesa, para permitir que essa pérola intuitiva desaparecesse nas gavetas dos especialistas. No entanto, este fragmento precioso que ultrapassa o conhecimento dos especialistas talvez corra o risco de ser tragado por outra gaveta científica. Menosprezar os méritos da ciência ocidental, porém, equivaleria a renegar as próprias bases do espírito europeu. De facto, a ciência não é um instrumento perfeito, mas nem por isso deixa de ser um utensílio excelente e inestimável, que só causa dano quando é tomado como um fim em si mesmo. A ciência deve servir e erra somente quando pretende usurpar o trono. Deve inclusive servir às ciências adjuntas, pois devido à sua insuficiência, e por isso mesmo, necessita de apoio das demais. A ciência é um instrumento do espírito ocidental e com ela se abre mais portas do que com as mãos vazias. É a modalidade da nossa compreensão e só obscurece a vista quando reivindica para si o privilégio de constituir a única maneira adequada de apreender as coisas. O Oriente ensina-nos outra forma de compreensão, mais ampla, mais alta e profunda, a compreensão mediante a vida. Conhecemos esta última como um sentimento fantasmagórico, que se exprime através de uma vaga religiosidade, motivo pelo qual preferimos colocar entre aspas a sabedoria oriental, remetendo-a para o domínio obscuro da crença e da superstição. Desta forma, ignoramos totalmente o realismo do Oriente. Não se trata porém de intuições sentimentais, de um misticismo excessivo que tocasse as raias patológicas de um ascetismo primitivo e intratável, mas de intuições práticas nascidas da flor da inteligência chinesa e que não temos motivo algum para subestimar. Esta afirmação talvez pareça temerária, provocando a desconfiança de alguns, o que não é de se estranhar, uma vez que é extremo o desconhecimento da matéria em questão. Além disso, a singularidade do pensamento chinês salta à vista, sendo compreensível o nosso embaraço no tocante ao modo pelo qual ele poderia associar-se à nossa forma de pensar. O erro habitual (o teosófico, por exemplo) do homem do Ocidente lembra o do estudante que, no Fausto, de Goethe, recebe um mau conselho do diabo e volta as costas, com desprezo, para a ciência; o erro ao qual me refiro é o de interpretar erroneamente o êxtase oriental, tomando ao pé da letra as práticas da ioga, numa imitação deplorável. Abandonar-se-ia desse modo o único chão seguro do espírito ocidental, para perder-se nos vapores de palavras e conceitos que nunca se originariam em cérebros ocidentais e nunca neles se enxertarão com proveito.
Disse um antigo adepto: Se o homem errado usar o meio correcto, o meio correcto actuará de modo errado. Este provérbio chinês, infelizmente muito verdadeiro, contrapõe-se drasticamente à nossa crença no método correcto, independentemente do homem que o emprega. No tocante a isso, tudo depende do homem e pouco ou nada do método. Este último representa apenas o caminho e a direcção escolhidos pelo indivíduo; é o modo pelo qual o indivíduo actua nesse caminho que exprime verdadeiramente o seu ser. Se assim não fosse, o método não passaria de uma afectação, de algo construído artificialmente, sem raiz e sem seiva, servindo apenas à causa ilegítima do autoengano. Além disso, poderia representar um meio de o indivíduo iludir-se consigo mesmo, fugindo talvez à lei implacável do próprio. Tudo isto está muito longe da consistência e da fidelidade a si mesmo do pensamento chinês. À diferença deste, tratar-se-ia, na hipótese acima formulada, de uma renúncia ao próprio ser, de uma traição a si mesmo e de uma entrega a deuses estranhos e impuros, artimanha no sentido de usurpar uma superioridade anímica e tudo aquilo que é justamente o contrário do método chinês. Essas intuições surgiram da vida mais plena, autêntica e verdadeira, da vida arcaica da cultura chinesa, que cresceu lógica e organicamente a partir dos instintos mais profundos. Tudo isso é para nós inacessível e inimitável». In C. G. Jung e R. W. Wilhelm, O Segredo da Flor do Ouro, Um Livro de Vida Chinês, Editora Vozes, tradução de Dora Silva e Maria Appy, 2011, ISBN 978-853-260-382-1.

Cortesia de EVozes/JDACT