segunda-feira, 27 de abril de 2015

O Manuscrito Alfield. Romance apócrifo que finge ser a edição crítica de um manuscrito de 1516, de uma crónica francesa desaparecida. Alan Dorsey Stevenson. «… todos esses jovens viviam vida ímpia, perversa e desregrada, e confirmavam o pensamento do moralíssimo Séneca…»

Cortesia de wikipedia

Texto Crítico do Manuscrito. Livro Dois
«(…) A leitura desses falsos livros creio que foi a causa do primeiro princípio e começo de seu amor por Thibert, o qual amor vinha contra Deus e contra a razão e contra a natureza: ele era, dela, seu próprio irmão, e ela, dele, sua própria irmã, contudo amavam-se tão intensamente que ela ardia em chamas de amor por ele, e ele da sua parte por ela. A história nos diz que nessa ocasião ainda não se tinham irmã e irmão juntado carnalmente um com o outro, por medo do pecado e por pavor do pai: pois não ousavam provocar-lhe a ira: pois muito lhe temiam a fereza e a fúria. Mas no entanto, por inspiração do demónio, que pairava sempre activo e diligente ao redor deles, o amor entre ambos crescia e aumentava sempre, e queriam-se os dois tanto como outrora Tristão e a bela Isolda ou Lancelote e a rainha Genebra. Os dois filhos que sir Roger fizera em Anne Lablonde, que fora a sua principal concubina ainda nos dias de vida da legítima esposa, chamavam-se, como já antes o mostrou a crónica, Giles e Thierry. Giles, o mais velho de ambos, sentia pelas mulheres de Malemort grande e estranha tentação, pois não era vadiar com elas que lhe dava prazer, mas espiá-las escondido onde pudesse vê-las nuas, e aí aplicava-se de tal forma que me envergonha dizer, pois esfregando-se com a própria mão chegava ao derrame da semente. Thierry, que era dos bastardos o mais novo, tinha mente perversa e desejos infames: de todas as mulheres do lugar não havia uma só que, estando sozinha, não lhe fugisse como se ele fosse um sarraceno ou coisa pior. Havia nessa ocasião em Malemort uma mulher embrenhada no meio da floresta que no inverno dormia em grutas e no verão em baixo de árvores e entre moitas e sebes, como se fosse uma fera selvagem feroz. Vivia de frutas e do que mais pudesse achar, e não bebia a não ser água, e quase não tinha outra roupa além de uma camisa que lhe ia até os joelhos; e os cães e os meninos se divertiam a persegui-la por entremeio da floresta. A mulher não passava de uma pobre criatura desatinada, mas Thierry, sempre que o corpo exigisse, saía por aqueles ermos à sua procura e, achando-a, enchz com ela até se aliviar, saciando assim o apetite da carne. Portanto, como bem podeis perceber, todos esses jovens viviam vida ímpia, perversa e desregrada, e confirmavam portanto o pensamento do moralíssimo Séneca, segundo o qual o homem não tem coisa mais vil do que si mesmo.
Agora deixemos por algum tempo os pecadores com seus pecados e falemos com prazer do filho mais velho de Roger de Giac, que se chamava Roger como o pai e como o avô. Tinha uns dezoito anos nesse tempo. Tanto a cavalo como a pé era melhor em armas do que jamais o foi ninguém de sua idade; alguns diziam dele que pelo corpo e pelo coração era moço apto a vir a ser homem de grandes proezas e assim tornar-se tão bom cavaleiro como o pai; outros diziam que passaria o pai como o leão passa o leopardo em força e bravura, para ser, em lugar do pai, o melhor cavaleiro do condado de Níniva. Parecia-se tanto com sir Roger que nunca pai e filho mais se pareceram em semelhança: era bem moldado de corpo, de rosto agradável à vista, e de boa estatura, tendo oito pés de alto. No entanto, não se parecia nem um pouco com sir Roger pelo fervor que punha no amor que votava à religião. Certifico-vos por verdade que nele residia Nosso Senhor Jesus Cristo, o que transparecia muito às claras na sua vida virtuosa, pois cuidava diariamente de fazer tão-só aquilo que pudesse agradar a Jesus: tanto assim que, se ao pai chamavam Besedeable pelas costas, aberta e puplicamente ao filho chamavam Amidieu: amigo de Deus. Tinha gosto em amanhecer sempre cedo, antes de qualquer outro dos irmãos e dos companheiros, e já no começo do dia rezar as suas orações, coisa que é riqueza de grande excelência neste mundo, e rezava-as em jejum, pois estômago cheio não pode ser inteira e perfeitamente humilde nem devoto. No decurso do resto do dia, quando não estava ocupado com cavalos nem espadas, punha-se todo a pensar em santos mártires e santas virgens. Todo dia à noite antes de dormir fazia suas orações a Deus, que é nosso senhor, autor e criador, e também à abençoada Virgem, que dia e noite sem parar orat pro nobis, e recomendava-se a todos os santos e santas. Era muito devoto de Santa Maria e de dizer as suas horas, e já pensava prometer a ela a sua virgindade. Jejuava uma vez por semana, no sábado, em atenção a ela, rogando que o guardasse sempre puro e casto e longe de tentação; pois esse jejum é para dar ao homem vitória sobre sua carne. E dúvida não há nenhuma de que, se a maior alegria de Deus reside no arrependimento e conversão de um pecador, a do Diabo reside em especial no corrompimento e perdição de um justo; assim, Satã pugnava sem descanso para impor seu domínio a Amidieu, da mesma maneira como impusera ao pai dele e aos irmãos, e à irmã; pois de todas essas almas cobiçava a alma desse jovem mais que todas as outras. E, se me perguntardes em que lugar estava Satã determinado a vencer aquele justo, eu vos responderei dizendo: em nenhum lugar senão na sua castidade; pois Satã, como nos ensina a palavra de Leão papa, faz tudo que pode para corromper o homem no mesmo lugar em que o acha mais forte em bons feitos e firmes propósitos; razão por que os homens pios o Diabo tenta especialmente com a ajuda de ímpias mulheres». In Alan Dorsey Stevenson, O Manuscrito Alfield, A Folha de Hera, Jazzseen, Julho de 2012, Vitória Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo, Biblioteca Pública do Espírito Santo, 2011.

Cortesia de Jazzseen/JDACT