domingo, 5 de abril de 2015

O Fiel Jardineiro. John le Carré. «No carro de quem?, perguntou Woodrow descontrolado. Estava a lutar, rejeitando aquela ideia louca, quem, como, onde, esmagando todos os outros pensamentos e sentidos para baixo, para baixo»

Cortesia de wikipedia e jdact

«A notícia atingiu a Alta Comissão Britânica em Nairob, às nove e trinta numa manhã de segunda-feira. Sandy Woodrow recebeu-a como um tiro, queixo rígido, peito para a frente, em cheio no seu dilacerado coração inglês. Estava de pé. De tudo isto só se lembrou depois, estava de pé e o telefone interno começou a tocar. Ele estava esticado à procura de qualquer coisa, ouviu o apito e dobrou-se para baixo a fim de apanhar o auscultador de cima da secretária e dizer Woodrow. Ou talvez, fala Woodrow. E provavelmente disse o seu nome com aspereza, disso lembrava-se bem: o som da sua própria voz pareceu-lhe a voz de outra pessoa, como uma chicotada, Fala Woodrow, o seu nome perfeitamente normal, mas sem o sobrenome familiar Sandy e dito quase com ódio, porque a conferência ritual com o Alto Comissário estava marcada para começar dali a trinta minutos em ponto e Woodrow, como Chefe de Chancelaria tinha o papel de moderador num bando de prima-donas, todas com assuntos de especial interesse e cada uma das quais exigia a posse exclusiva do coração e do pensamento do Alto Comissário. Isto é, mais outra segunda-feira de mer… em fins de Janeiro, a época mais quente do ano em Nairobi, época de poeira, de cortes de água, erva queimada, olhos a arder e o calor a rebentar o pavimento das ruas; e os jacarandás à espera das longas chuvadas, como toda a gente. Exactamente por que razão estava de pé é que foi um problema que ele nunca resolveu. Mais normal seria estar acaçapado atrás da secretária, manuseando as teclas do computador, revendo ansiosamente as instruções vindas de Londres e as informações vindas das vizinhas Missões Africanas. Encontrava de pé à frente da secretária, procedendo a um gesto vital que não conseguia identificar, tal como a endireitar a fotografia da sua mulher. Glória, e dois filhos pequenos, tirada talvez no último Verão durante a licença de férias no seu país. A Alta Comissão situava-se numa encosta e um aluimento constante era o suficiente para fazer inclinar as molduras durante um fim-de-semana de desocupação. Ou talvez tivesse estado a lançar spray insecticida contra qualquer insecto queniano a que nem os diplomatas são imunes. Tinha havido uns meses antes uma praga de oftalmia de Nairobi, causada por mosquitos que, quando espalmados ou esfregados acidentalmente na cara, causavam bolhas à volta dos olhos que podiam levar à cegueira. Ele estaria de spray em riste, ouvira o telefone, pousara a lata sobre a secretária e agarrara no telefone: isto também era provável, porque mais tarde aparecia vagamente na sua memória como que um slide a cores de uma lata vermelha de insecticida pousada na bandeja out sobre a secretária. Portanto: Fala Woodrow e o telefone encostado ao ouvido. Olá, Sandy, é o Míke Mildren. Bom dia. Está sozinho, por acaso? Sim, respondeu Woodrow, estava só. Porquê? Aconteceu uma coisa chata, Sandy. Por acaso, até estava a pensar em ir aí falar consigo. Isso não pode esperar até depois da reunião? Bem, acho que realmente, não... Não pode, não, replicou Mildren ganhando coragem à medida que falava. - Trata-se de Tessa Quayle, Sandy. Surge subitamente outro Woodrow, de nervos eriçados. Tessa. Que é que se passa com ela?, disse ele num tom deliberadamente indiferente, com o pensamento a correr em todas direcções. Oh Tessa. Oh meu Deus. Que é que terás feito desta vez? A polícia de Nairobi diz que foi morta, disse Mildren como se fosse uma coisa normal. Que disparate, replicou Woodrow antes de ter tempo para pensar. Isso é ridículo. Onde? Quando? No lago Turkana. Margem leste. Este fim-de-semana. Estão a ser muito diplomáticos com os detalhes. No carro dela. Segundo eles, um lamentável acidente, - acrescentou, em tom de desculpa, tive a impressão de que não queriam ferir os nossos sentimentos. No carro de quem?, perguntou Woodrow descontrolado. Estava a lutar, rejeitando aquela ideia louca, quem, como, onde, esmagando todos os outros pensamentos e sentidos para baixo, para baixo, rejeitando furiosamente todas as memórias secretas que tinha dela para as substituir pela recordação de certa paisagem árida e lunar de Turkana que ele conhecera durante uma viagem de trabalho, seis meses atrás, na companhia incontestavelmente irrepreensível do adido militar. Não saia daí, eu vou ter consigo. E não fale com mais ninguém, está a ouvir?» In John le Carré, The Constant Gardener, O Fiel Jardineiro, tradução de Helena Ramos e Artur Ramos, Publicações Dom Quixote, Porto, 2001, ISBN: 972-202-085-4.

Cortesia de PDQuixote/JDACT