sábado, 25 de abril de 2015

O Encoberto. Natália Correia. «Oh, ideais ladrões da nossa alma, oh, peçonha, que Satanás vos inventou? E vós venais cronistas, parasitas dos vencedores e abutres do vencido que a serpente da glória não tentou, e vós hienas, porque me escondestes…»

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«(…) Para mim não há nada mais claro. Pensa nesses monarcas que, exercendo uma autoridade absoluta, aos olhos do povo, não passam de porcos ou abutres. Não é uma loucura um animal destes querer passar por um rei? Abre-se a cortina de o purgatório dos Comediantes e Floriana, vestida de moura, convida os empedernidos corações humanos a enternecerem-se com o romance da Moura Huria. Vai começar o entremês. Juntam-se ao público e seguem o espectáculo.

Homens, escutai o amor
da moura pelo rei cristão!
Depois voltareis à guerra
da humana condição.
Andando a apanhar rosas
num rosal que meu pai tinha
vi os cativos cristãos
que de Alcácer Quibir vinham.

No rosal que meu pai tinha
um espinho me picou:
era o olhar de um cativo
que logo me cativou.
Ai triste de mim, coitada!
Chorava e tinha razão
que em sujeição que doía
era dom Sebastião
quem ao Xerife meu pai
de joelhos o servia.
Não são passados três dias
já eu assim me dizia:
ai triste de mim, coitada!
Renego o nome de Huria.
Se Branca Flor me chamara
eu em flor me tornaria,
que se o seu amor me dera
eu a fuga lhe daria.
Não são passados três dias
já eu assim lhe dizia:
sou a filha do Xerife
que te venho libertar.
Tomou-me logo nos braços,
pusemo-nos a caminhar.
Fomos dar a umas portas
que eram as portas de Arzila.
Abre o fronteiro os batentes
julgou morrer de alegria
pois era vivo o seu rei
que diziam ter morrido
na guerra que ele fizera
aos perros da mouraria.
Ai triste de mim, coitada!
para gemidos e ais
é que essas portas se abriam
que por perder a batalha
dom Sebastião chorava
e penitência fazia
e antes de volver ao reino
sete anos se volveriam.
Ai triste de mim, coitada!
Sombra da sua miséria,
dei sete voltas ao mundo.
Por amor do rei cristão
que Branca Flor me chamara
agora me chamarão
a pega de um vagabundo.

Coberto de andrajos, Bonami entra no purgatório dos comediantes onde, no papel do arrependido Sebastião, demonstra ao mundo a vantagem de se matarem os heróis à nascença. À sua entrada, Floriana tapa o rosto com o braço, conservando essa atitude durante as lamentações do rei-penitente.

Homens que pelo veneno do sublime
tendes o cérebro amolecido, contemplai
estes andrajos, imagem da abjecção
que nos revela o êxtase da gloriosa acção!
Os túmulos dos meus antepassados abri,
seus medonhos e mirrados despojos beijei;
na cadavérica exalação dos heróis embebi
minha alma com que os mortos imitei.
Por minha glória o meu povo perdi.
Na História quis entrar coroado de sois
e no espelho da derrota vi
o monstro que contra a liberdade
soltou a peste dos heróis.

Oh, ideais ladrões da nossa alma,
oh, peçonha, que Satanás vos inventou?
E vós venais cronistas, parasitas
dos vencedores e abutres do vencido
que a serpente da glória não tentou,
e vós hienas, porque me escondestes
o sórdido reverso do sublime
que no crânio pueril do guerreiro
faz cantar o pássaro do crime?

João Castro corre para o purgatório dos comediantes e cai de joelhos nos degraus. Floriana sai do seu melodramático constrangimento para manifestar uma perplexa indignação. Senhor, porque vos afligis com culpas que não são vossas? Culpai antes a nação embriagada pelos fumos de um império que a excedia como uma enfermidade». In Natália Correia, O Encoberto, Galeria Panorama, Tertúlia do Livro, Lisboa, 1969, Arquivo Nacional Torre do Tombo, 2014.

Cortesia de GPanorama/JDACT