quinta-feira, 23 de abril de 2015

Memórias da Grande Guerra. Jaime Cortesão. «Aqui na ‘Lísbia’, a rapaziada sempre avara nos louvores aos mestres (Meu Deus!, com que razão!...) é ouvi-la falar dum deles: tem extremos de carinho»

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O Génio do Povo. Dezembro de 1916
«(…) Vencer numa arrancada, sem preâmbulos, à doida, amigos, que ideal! Agora que se passem oito ou dez meses na instrução de soldados, em compras de material, criando oficiais, a improvisar um exército, no máximo de segurança e método possível com estes nervos e o desarranjo anterior, oh!, isso é insuportável. Se fosse questão de uns oito ou dez dias a resolver, vá, tolera-se todos os diabos! Mas assim: um ror de meses, um ano, uma eternidade. Sabe-se lá! E muitos cançam, duvidam, verberam... Não obstante a preparação lá segue. Verdade, verdadinha, ninguém estava acostumado a trabalhar. Oficiais de gabinete, habituados ao ronronar burocrático, comandam uns, ao sol e ao vento, e outros vêem-se a braços com trabalho. Adivinha-se um arquejar imenso e aflito. É o arrancar duma locomotiva enferrujada. E aqui, além, no tumulto da obra, dentre a poeira levantada pelo formilhar das gentes, surgem a pouco e pouco caras de homens, arrugadas de energia, vultos ásperos de construtores, ofegantes, absorvidos na grande faina. Hão-de ver: esta guerra vai abrir uma escola de vontades e caracteres. Dentre a caótica massa humana erguem-se já, algumas figuras nítidas. Por enquanto são escorços a carvão, máscaras em três vincos, olhos fitos, bocas premidas, masseteres obstinados que se contraem. Já as escolas de oficiais milicianos deitaram cá para fora algumas centenas deles, em Lisboa e Porto. Aqui na Lísbia, a rapaziada sempre avara nos louvores aos mestres (Meu Deus!, com que razão!...) é ouvi-la falar dum deles: tem extremos de carinho. À uma, todos o incensam. Esse homem raro, pois alcançou o respeito unânime dos alunos, é o tenente-coronel Pereira Bastos, director da Escola.
Ouço, no acaso das ruas, discípulos seus de todos os credos políticos: sempre o mesmo culto desvanecido pelo mestre. Desvanecido, sim! Orgulham-se dele! E eis como o pintam. Claro e insinuante na cátedra, do mesmo passo atencioso e enérgico fora dela, imperturbavelmente calmo e correcto, conseguiu numa terra de maldizentes e cépticos, veneração para si, um alto respeito para a sua nova missão e, no pior dos casos, que se aproximassem da República. Em obra tamanha, a influência moral dum verdadeiro mestre, como este, perdura no tempo e a distância. Vamos ter uma guerra de milicianos, lembrem-se disso. A memória das suas palavras há-de inspirar mais tarde muito acto nobre e heróico. E os exercícios continuam. Enquanto a 1ª Divisão se prepara nas linhas de Torres, mais 10000 homens se concentram em Tancos. Oh!, e os risinhos de certa gente, porque o Afonso Costa assistiu, montado num cavalo, em companhia do ministro da Guerra, ao desfilar desses milhares de homens, ao findar os exercícios... O Afonso Costa a cavalo... Hão-de concordar que é de morrer a rir! Pois é certo: meia Lisboa disse a sua gracinha. Há espirituosos que levam tudo isto de troça. Muita gente começa mesmo a convencer-se de que não estamos em guerra. Que importam os avanços das nossas tropas em território inimigo, no Leste Africano, agora um êxito, logo um revés? Coisas nas colónias.
Também a Ibo foi atacada por um submarino. Vêm os periódicos e dizem que à entrada do Tejo os navios da nossa divisão têm rocegado e feito explodir minas dos boches e esse trabalho é inçado de perigos e extenua. Tudo isso, afirma-se à boca pequena, são cantigas do Leote, para mostrar serviços. Um grande número destes detractores fala apenas pela preocupação da esperteza. É vezo do indígena. A eles, ninguém os engana. Outros... Outros lá têm as suas razões e aproveitam o ambiente». In Jaime Cortesão, Memórias da Grande Guerra, Obras Completas, Portugália Editora, Lisboa, 1969.

Cortesia PortugáliaE./JDACT