quarta-feira, 29 de abril de 2015

A Voz dos Deuses. João Aguiar. «O meu tio, que na prática do seu ofício aprendera a desconfiar da natureza humana, ouviu-o com certa incredulidade porque tudo aquilo lhe pareceu um conto feito à medida exacta para encantar donzelas: revoltas, chacinas, a Cidadela de Brácara a arder»

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O oráculo
«(…) Quando Tongétamo chegou à região de Ebora, o grupo estava reduzido a três. Um deles teve qualquer sonho que interpretou como um presságio e decidiram prosseguir a marcha para Sul, até que foram atacados por um bando de salteadores. Durante a luta Tongétamo fora ferido nas costas e não se lembrava de mais nada; os seus companheiros estavam talvez cativos, ele ficara abandonado em pleno campo, dado como morto. Esta foi a história contada pelo estrangeiro. O meu tio, que na prática do seu ofício aprendera a desconfiar da natureza humana, ouviu-o com certa incredulidade porque tudo aquilo lhe pareceu um conto feito à medida exacta para encantar donzelas: revoltas, chacinas, a Cidadela de Brácara a arder, um jovem príncipe escapando à morte no último instante..., tudo lhe soava a fantasia e Camalo gostava das coisas simples, das situações normais e sem surpresas. A história de Tongétamo causou-lhe um certo mal-estar. Claro que na minha mãe ela teve o efeito oposto e depressa transpareceu que não seria possível separar Tongétamo de Camala a não ser pela violência. Porque (hoje estou certo disso, apesar da opinião diferente do meu tio) também o meu pai se apaixonara profundamente pela minha mãe; não se tratava, como Camalo sempre acreditou, de uma atracção passageira. Enfim, o meu tio vergou-se à evidência: a única forma de evitar a desonra da família e a necessária vingança era permitir o casamento e foi o que ele fez. Eu nasci exactamente duzentos e setenta dias depois da cerimónia nupcial.
Quando o meu pai foi encontrado ferido e inconsciente, Camalo advertira a irmã de que um regresso imediato a Balsa, abandonando o propósito de encontrar o novo santuário da Lua, equivalia a uma grave afronta à deusa. Ao menos, sugeriu, deviam procurar saber em Myrtilis se as notícias chegadas ao Cineticum eram verdadeiras. Perdida na obsessão de regressar, a minha mãe recusara dizendo que, como mulher, sabia melhor o que podia agradar ou desagradar à deusa. E mostrou-se triunfante quando, já em Balsa, uns amigos de Camalo garantiram que a informação não era exacta: havia, de facto, um santuário da Lua, mas já muito antigo e ficava bem longe, para lá do Tagus. De uma história velha fizera-se uma lenda nova, certamente alguns viajantes haviam falado do santuário em Ebora ou Myrtilis e talvez o desejo de atrair peregrinos e mercadores tivesse levado a gente local a deturpar o relato. Ouvindo isto, Camala declarou que fora por vontade da deusa que ela, procurando um lugar sagrado onde ele não existia, encontrara Tongétamo. Assim tentam os mortais conhecer os desígnios dos deuses e torná-los propícios aos seus interesses, porém sem resultado. Ao regressar a Balsa, desistindo das suas intenções piedosas, a minha mãe atraíra sobre si a ira do céu. O casamento foi um desastre. Não duvido, como afirmei, que o meu pai amasse verdadei­ramente a mulher, mas a vida no Cineticum era demasiado diferente daquela a que estava habituado e além disso não podia esquecer a chacina da família, a fuga ignominiosa. O seu desejo era regressar à Calécia, formar um exército, atacar Brácara, lavar em sangue as afrontas e crimes, tomar o poder. Mas (e nisto o meu tio teria razão no seu julgamento) faltava-lhe a força interior que faz um verdadeiro chefe. A vontade de vingança era forte, mas não o bastante para enfrentar com êxito dificuldades quase intransponíveis, estava só, o inimigo tivera tempo para consolidar a posição conquistada. Depois, havia a mulher, que em breve lhe daria o primeiro filho. Uma esposa cónia, mesmo muito amada, devia ser uma novidade inquietante para um Brácaro. Entre os Lusitanos das regiões mais ao norte, e muito especialmente entre os Calaicos, é costume as mulheres acompanharem os seus homens na guerra e combaterem ao seu lado. Tongétamo terá ficado desorientado com uma mulher que passava o dia dentro de casa, baixava os olhos ao falar e fazia da passividade uma arma para dominar o marido. Quando eu nasci, já o meu pai devia ter compreendido que ao casar abdicara da sua liberdade, a menos que abandonasse a mulher e o filho. Essa angústia mortal leu-a Camalo no rosto do cunhado, no dia do meu nascimento». In João Aguiar, A Voz dos Deuses, 1984, composição de Maria Samagaio, 2005, Lisboa, Sandra Ferreira, 2007, Grafiasa, Asa Editores, Rio Tinto, ISBN 972-41-1072-9.

Cortesia de ASAEditores/JDACT