sexta-feira, 24 de abril de 2015

A Loba de França. Maurice Druon. «O dia seria quente, mesmo pesado, como já a véspera fora. Isso adivinhava-se pelo sol, que dava à pedra um tom rosado, bem como pelo cheiro nauseabundo do lodo, que subia do Tamisa…»

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«(…) Era o segundo Verão que passavam naquele tugúrio. Já há duas horas que o dia nascera sobre a mais célebre fortaleza de Inglaterra, coração do reino e símbolo do poder dos seus príncipes; sobre a White Tower, construída por Guilherme, o Conquistador, sobre as fundações do velho castro romano, esse imenso torreão quadrangular, delicado apesar das proporções gigantescas, sobre as torres e as muralhas de ameias mandadas construir por Ricardo Coração de Leão, sobre a residência do rei, a Capela de São Pedro e a Porta dos Traidores. O dia seria quente, mesmo pesado, como já a véspera fora. Isso adivinhava-se pelo sol, que dava à pedra um tom rosado, bem como pelo cheiro nauseabundo do lodo, que subia do Tamisa, mesmo ao lado, e cujas águas alimentavam os fossos. O corvo Eduardo reunira-se aos outros corvos gigantes no relvado tristemente célebre, o Green, onde era instalado o patíbulo nos dias das execuções. Aí os pássaros podiam debicar a erva alimentada pelo sangue dos patriotas escoceses, dos criminosos de Estado, dos favoritos caídos em desgraça. O Green era limpo palmo a palmo e os caminhos de laje varridos sem que estes corvos fossem afugentados, já que ninguém se atrevia a tocar nos animais que ali viviam, objecto de uma vaga superstição desde tempos imemoriais.
Os soldados da guarda saíam dos seus alojamentos, afivelavam os cinturões ou enfiavam os borzeguins à pressa, punham os elmos e reuniam-se para a parada diária, que, nessa manhã, tinha uma importância especial, já que era o primeiro de Agosto, dia de São Pedro ad Vincula, a quem era dedicada a capela, e festa anual da Torre. Os ferrolhos foram corridos na porta baixa da cela. O carcereiro abriu-a, espreitou para o interior e mandou entrar o barbeiro. Este, um homem de olhos pequenos, nariz comprido, boca redonda, vinha uma vez por semana fazer a barba ao Rogério Mortimer mais jovem. Nos meses de Inverno, a operação era um verdadeiro suplício para o prisioneiro, já que o condestável Estêvão Seagrave, governador da Torre, declarara: Se lorde Mortimer quer continuar a fazer a barba, posso enviar-lhe o barbeiro, mas não tenho obrigação nenhuma de lhe mandar água quente. E lorde Mortimer não desarmara, ao princípio para desafiar Seagrave, em seguida porque o seu inimigo, o execrado rei Eduardo, usava uma bonita barba loura, e finalmente, e sobretudo, por si mesmo, já que sabia que, se cedesse nesse ponto, acabaria por se abandonar progressivamente ao desmazelo do corpo. Sob os seus olhos tinha sempre o exemplo do tio, que já desistira há muito de quaisquer cuidados pessoais. Com o queixo hirsuto, as madeixas em desordem, ao fim de dezoito meses de detenção lorde de Chirk tinha o aspecto de um velho anacoreta e queixava-se incessantemente dos múltiplos males que o afligiam. A única coisa que continua a assegurar-me que ainda estou vivo, costumava dizer, são as dores do meu pobre corpo». In Maurice Druon, Os Reis Malditos, A Loba de França, 1966, tradução de Helena Ramos, Círculo de Leitores, 2006, ISBN 978-972-42-3862-3.

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