domingo, 12 de abril de 2015

A Filha do Barão. Célia C. Loureiro. «Quando João tece a união da sua única filha Mariana Albuquerque com um inglês que investiga o potencial comercial do vinho do Porto, não prevê a espiral de desenganos… Mariana tem catorze anos…»

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1805 - 1806
«João Albuquerque, barão de Arraiais, apoiou a mão da sua única filha conforme esta subia para a berlinda. Manteve os olhos baixos para evitar que ela vislumbrasse a tristeza do adeus no seu olhar. Trazia um lenço no bolso do colete, sujo da sua doença do peito. Sabia que não teria disponível o tempo de que necessitava, e não estava disposto a sacrificar a segurança da mulher nem a de Mariana. Sendo dono e senhor de uma extensa companhia de extracção e transporte de madeiras, estava profundamente dependente do negócio com o Oriente. Era daí que vinham contadores e baús indo-portugueses, importados para utilização da nobreza e realeza, para fins de decoração nas suas residências com madeiras exóticas e madrepérola. Ele conseguia concebê-los na sua fábrica de São Domingos a partir das madeiras que importava, em modelos semelhantes aos orientais. Como barão de uma pequena extensão de terra nos socalcos do Douro, pois que um dos seus antepassados fora um dia de valia a João V, não era suposto ter de passar as suas horas metido numa pequena casinha na alfândega, junto ao Tejo, de onde controlava a chegada e a partida de mercadorias. No entanto, e devido à má gestão do seu bisavô, que provavelmente se achara tão enriquecido pela exploração de ouro no Brasil quanto a própria Majestade Fidelíssima, gravitando ao seu redor na corte, vira-se obrigado a investir os parcos meios da família em algo que lhes permitisse viver com dignidade. E acabara por descobrir que, por muito desonroso que fosse para um nobre trabalhar, tinha talento para os negócios e que os números eram o seu dom. Enriquecera pecaminosamente com o negócio a que se dedicara. Desse modo, o colo de Mariana nunca fora obrigado a cruzar a rua sob o sol do meridiano e dona Sofia nunca tivera precisão de criados nem de jóias. Era bem guarnecida de ambos, ainda que isso não a trouxesse menos amarga. O olhar escuro como ébano de Mariana dirigiu-se-lhe, levemente angustiado. Procurou o dele, exigiu que se prendessem um no outro por um breve momento. Talvez, perspicaz como era, suspeitasse que aquela poderia ser a última vez que veria o pai. João Albuquerque estava certo de que assim era; a sua saúde deteriorava-se a olhos vistos, a tísica era contagiosa e, ao entardecer, era geralmente tomado por febres que o enfraqueciam. As noites arrastavam-se com uma tosse aflitiva que mantinha a mulher igualmente acordada, e era olhado de lado pelos homens que, como ele, dividiam o espaço na sua salinha na alfândega. Tinha, contudo, sido demasiado apreciado pela rainha, para que se opusessem à sua presença junto aos seus cadernos de números. Era um homem tido em certa conta e, se não fosse a doença que havia meses lhe corroía os pulmões, teria um aspecto ainda jovem para os seus trinta e quatro anos. Ultimamente, parecia que a pele adquirira um tom macilento e que a cavidade toráxica se tornava mais evidente. Emagrecia no esforço por trazer algum ar ao seu interior. A peste cinzenta reclamava-o para o outro lado e ele, como bom cristão, assegurara-se de que encaminhava as duas almas que tinha a seu encargo para a costa.
Dona Sofia, de trinta e três anos, dedicou um último olhar ao patamar que antevia as escadas para a casa onde circulara nos últimos vinte anos. Teria saudades dos candelabros a iluminar-lhe os corredores à noite, bem como da tapeçaria de Aubusson que tanto se esforçara por adquirir, e que ilustrava episódios das famosas Fábulas de La Fontaine, e da cozinha com os recipientes de cobre pendurados nas paredes caiadas. A construção era recente, pós-terramoto, munida da melhor mobília adquirível em Portugal. Não fosse o seu marido também chefe de quinze artesãos que a trabalhavam ao gosto oriental, como estava em voga. A residência situava-se logo ali, na nova baixa de Lisboa, paredes-meias com a Igreja de São Nicolau. Ainda não tinham cedido ao capricho de adquirir uma propriedade mais opulenta para os lados da Ajuda, e agora que podiam facilmente fazê-lo, a família era desmantelada. Dona Sofia contorcia-se interiormente de revolta ante aquela última disposição do marido. Deixara claro que ganharia sempre qualquer discussão, mas ela não se conformava em abandonar o conforto da sua casa. Também Mariana tinha dificuldade em compreender o porquê daquela decisão do pai, mas ele garantira-lhe que, quando tivesse filhos, seria capaz de descobrir a resposta por si só. Sentiria saudades da vida na cidade onde sempre vivera; do Teatro Italiano, apelidado de São Carlos a pedido da princesa Carlota Joaquina de Bourbon, com o qual só fora autorizada a sonhar, do Rossio, com a sua azáfama de comerciantes e as suas mercadorias de cheiros característicos, da frente ribeirinha, onde se apinhavam varinas, e de toda a restante panóplia de gente que povoava as ruas de Lisboa, e ainda do passeio de caleche até Belém ao domingo de manhã, quando os abastados do bairro assistiam à missa nos Jerónimos. Nessas ocasiões, ela estendia as pernas no discreto areal acompanhada da sua mestra, a jovem Maria, que era também dama de companhia, das não muito faladeiras». In Célia Correia Loureiro, A Filha do Barão, 1809, Marcador Editora, 2013/2014, ISBN 978-989-754-039-4.

Cortesia de MarcadorE/JDACT