quarta-feira, 18 de março de 2015

Tentativa de caracterização. A Revolução de 1383. António Borges Coelho. «… no combate da Ribeira do Tejo: Bradava o Mestre que fizessem algumas cousas que via que cumpriam, trigosamente. E o grande arroido das gentes e som das armas com que pelejavam, empachava tanto seu mandado que parecia que mandava em vão»

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Fernão Lopes: A Concepção da História
«(…) A vitória da revolução traduziu-se em alterações de tal modo profundas que Fernão Lopes, às Seis Idades vividas até então pelo Homem em sociedade (segundo a ideologia que bebia em Eusébio e Beda), acrescenta como quem jogueta, uma Sétima Idade, aberta pelos feitos que rodearam a eleição do Mestre de Avis como rei de Portugal. Luís Sousa Rebelo vê nesta Sétima Idade um momento fundamental do tal plano providencial, mas, em nossa opinião, o jogueta e a afirmação de que tais falamentos pouca parte têm de verdade revelam um Fernão Lopes ultrapassando visões que vinham muito de trás e a servir-se dos passos ideológicos como quem se serve de passos bíblicos para tornar mais salientes as alterações sociais e políticas operadas com o levantamento de Lisboa e os acontecimentos que designamos corno revolução de 1383. Ao interpretar e ordenar os acontecimentos, uma mentalidade nova rasga preconceitos estabelecidos. Assim, ao narrar a batalha da Ribeira do Tejo durante o cerco da cidade de Lisboa, depois de louvar dois combatentes, escreve: Não entendais vós porém que eles sós defendiam as galés sem outro pelejar por as defender. E na batalha de Aljubarrota: Ali se acendeu uma forte e crua batalha, ferida de golpes quais os homens têm em costume de dar, e não quejandos alguns escrevem. Para que diremos golpes nem forças nem outras razões compostas por louvor de alguns nem afremosentar história que os sisudos não hão de crer, de guisa que de histórias verdadeiras façamos fábulas patranhosas? Abasta que duma e doutra eram dados tais e tamanhos golpes como cada um melhor podia apresentar àquele que lhe caia em sorte; de guisa que os muitos por subjugar, e os poucos, por se verem isentos de seus inimigos, lidavam com toda sua força. Quando escreve a ladainha dos heróis de 1383-1385, Fernão Lopes segue não a ordem da fidalguia mas como a mão quiser mover a pena.
A chefia militar aparece deste modo no combate da Ribeira do Tejo: Bradava o Mestre que fizessem algumas cousas que via que cumpriam, trigosamente. E o grande arroido das gentes e som das armas com que pelejavam, empachava tanto seu mandado que parecia que mandava em vão. Esta passagem lembra o comando de Kuznetsov na batalha de Austerlitz pela pena de Leão Tolstoi. E a acentuar mais este mandar em vão: O Mestre andava a cavalo pela ribeira, como dissemos, fazendo entrar as gentes nas galés, metendo-se no mar com afincamento; e na água veio um virotão e deu-lhe na espádua do cavalo, e o cavalo, sentindo-se ferido, caiu logo com ele na água. E foi o Mestre sob a água, armado como andava, com bacinete sem cara, e a gente que era toda ocupada cada um onde melhor podia, não o viram. E sem sendo acorrido de nenhum, quando se sentiu sob a água fora da besta, pôs as mãos nos joelhos e alçou-se em pé, e achou-se tão alto que lhe dava a água por sob a barba.
A obra de Fernão Lopes encontra-se na fronteira entre a prática da leitura individual e a da leitura para o colectivo: se sois bem lembrado do que tendes lido; vós todos ouvis e nenhum não pergunta. Como vimos também, Fernão Lopes conheceu a diferença entre o acontecido e a narração do acontecido. E ao descrever os sofrimentos da Lisboa cercada, insiste na diferença entre ouvir/ler e sofrer: que tanta diferença há de ouvir cousas àqueles que as então passaram como há da vida à morte. Se interrogássemos o autor da Crónica de D. Pedro sobre se a História cumpriria um projecto divino, responderia obviarnente: Muito alto senhor Deus, que em sua providência nenhuma cousa falece, que tinha disposto de o Mestre ser rei, ordenou que não matasse [o Andeiro] outro senão ele. Mas joguetando: não foi afinal o bom do Rui Pereira que terminou com a vida do conde? E se plano obviamente havia, se Deus criou todas as idades, do postumeiro dia bem como do plano, dizemo-lo com ousança de falar, nenhum era sabedor. Indicamos atrás conhecimentos epistemológicos, distinção do acontecido e narração do acontecido, etc., que estão hoje na ordem do dia. Mas Fernão Lopes sem mencionar mais autores, isto é, sem designar as suas fontes, levanta em breves, expressivas e saborosas palavras aquilo que Espinosa designaria como modos de conhecer. Conhecer é revelar-se e são quatro os modos das revelações: dois corporais e dois espirituais. Os corporais são da parte de fora, os espirituais da parte da alma. O modo primeiro corporal é quando os olhos corporais são abertos a ver o céu e a terra e outras cousas; esta revelação ou demonstração não é perfeita, porquanto por ela não alcançamos as virtudes das cousas que vemos. O segundo quando vemos a de fora cousa que tem mistério de dentro, assim como Moisés, que viu arder o espinheiro por que se mostrava a encarnação do Filho de Deus». In António Borges Coelho, A Revolução de 1383, Editorial Caminho, Colecção Universitária, 1984.

Cortesia da Caminho/JDACT