sexta-feira, 13 de março de 2015

História do Pudor. Jean-Claude Bologne. «Na linguagem preciosa, o pudor torna-se ‘o estigma da vergonha’ e as maçãs do rosto ‘os tronos do pudor’. Ao mesmo tempo, sob a influência do latim, o pudor transforma-se em sentido da honra. Aí está algo que serviria para resolver os dilemas…»

jdact e wikipedia

Pudores individual e social.
«(…) Afinal, é assim que se nos apresenta o pudor, como perpétuo combate entre instinto e razão, entre consciência e inconsciência, entre indivíduo e sociedade. Seria necessário estudar outros pares, muitos outros sentimentos vizinhos para o traçar perfeitamente. Em que difere o pudor da vergonha, da humildade, da modéstia, da timidez? Como se demarca o despudor da impudicícia? A título de hipótese de trabalho, definir-se-á o pudor como o sentimento que impede de realizar ou olhar uma acção (pudor corporal) ou a sua representação (pudor artístico) condenada por um código moral pessoal (pudibundaria) ou característica de uma dada época e lugar (pudor), Por respeito para consigo próprio (pudor) ou para com os outros (decência).

As palavras e a história
O pudor, para o etimologista, nasceu no século XVI. A história do sentimento, porém, não se reduz à da palavra, por um lado, porque havia pudor muito antes de haver o nome, por outro, porque o próprio termo, quando apareceu, designava frequentemente outra coisa. Há que saber, portanto, que palavras, que hoje designam sentimentos muito diferentes do pudor, podem substituí-lo nos textos antigos que teremos que citar. Na Idade Média, nojo e vergonha, são as mais correntes. Quando Chrétien de Troyes evoca uma rainha envergonhada como donzela, é ao pudor feminino que faz nitidamente alusão. No século XVI, com o gosto de associar sinónimos, a parelha sem vergonha e sem pudor invade as páginas e é por vezes difícil separar um de outro dos sentimentos. No século XVII, a modéstia faz furor entre as mulheres, enquanto os homens se contentam em ser decentes, civis, honestos (ou, o que, hélas!, é mais frequente, indecentes, incivis e desonestos). Pudor e pudicícia, estão ainda mal separados e ambos significam ainda castidade. São os primeiros dicionários que dão o sentido actual ao pudor (boa vergonha, honesta vergonha) e à pudicícia (acepção sexual). O pudor-castidade fica então enfeudado à modéstia soberana: esta tem particular cuidado com o pudor: não basta dizer que lhe põe pregas no corpete e o veste de saias compridas? O termo modéstia corresponde aqui ao sentimento moderno de pudor.
Na época em que vergonha podia designar pudor, o pudor, por sua vez, podia designar vergonha... O que não conserta lá muito bem as coisas. Se o francês antigo não conhece a palavra, o latim medieval conserva toda a família dos derivados de pudor. Pudenda, pudor, designam ainda os órgãos vergonhosos; impudicus, designa o maior, o mais indiscreto dos dedos da mão. Nas suas poesias, os goliardos atacam impudenter (vergonhosamente) a corte romana. E esta acepção irá manter-se até ao século XVII. Na linguagem preciosa, o pudor torna-se o estigma da vergonha e as maçãs do rosto os tronos do pudor. Ao mesmo tempo, sob a influência do latim, o pudor transforma-se em sentido da honra. Aí está algo que serviria para resolver os dilemas de Corneille. Rodrigo, ao vingar o pai, dá provas de pudor; mas tem vergonha de ter matado o pai de Ximenes, é o seu pudor a manifestar-se de novo...
Surpreendente: do século XVI para o século XVII, pudico e decente aplicam-se tanto a actos como a sentimentos. Joana de Navarra será declarada impudica por Brantôme por se ter casado quatro vezes; o novo casamento de Ogine, para Pasquier, é coisa de muita vergonha e pudor: não instituiu Deus o casamento por pudor, vergonha, honesddade? Em 1792, quando as execuções à pressa exasperavam o público, o carrasco Sanson queixa-se dos entes .tranquilos, porque o público continua a querer decência. A guilhotina passa a ter a decência que convém a uma viúva». In Jean-Claude Bologne, Histoire de la pudeur, Olivier Orban, 1986, História do Pudor, Editorial Teorema, Círculo de Leitores, 1996, ISBN 972-42-1374-9.

Cortesia de CL/JDACT