segunda-feira, 30 de março de 2015

Ensaio sobre o Absurdo. O Mito de Sísifo. Albert Camus. «… acaba sempre por se escorar no irracional do pensamento humano. Não lhe escapa nenhuma das evidências irónicas ou das ridículas contradições que depreciam a razão. Só uma coisa lhe interessa e é a excepção, seja a da história do coração ou do espírito»

Cortesia de wikipedia

Os muros absurdos
(…) Heidegger considera friamente a condição humana e anuncia que esta existência é humilhada. A única realidade é a inquietação em toda a escala dos seres. Para o homem perdido no mundo e os seus divertimentos, essa inquietação é um medo breve e fugidio. Mas, quando esse medo toma consciência dele mesmo, se transforma em angústia, o clima permanente do homem lúcido em que a existência se redescobre. Esse professor de filosofia escreve sem nenhum tremor e na linguagem mais abstracta do mundo que o carácter finito e limitado da existência humana é mais primordial que o próprio homem. Interessa-se por Kant mas é para reconhecer o carácter acanhado de sua Razão pura. É para concluir, nos termos das suas análises, que o mundo nada mais consegue oferecer ao homem angustiado. Essa inquietação a tal ponto lhe parece, na verdade, ultrapassar as categorias do raciocínio, que ele pensa unicamente nela e não fala de outra coisa. Enumera as suas faces: de tédio, quando o homem comum procura nivelá-la com ele mesmo, e mitigá-la; de terror, quando o espírito contempla a morte. Ele também não separa a consciência do absurdo. A consciência da morte é o apelo da inquietação e a existência recorre então a um apelo próprio por intermédio da consciência. É a voz da própria angústia e convoca a existência a retornar ela própria da sua perda no seu anónimo. Também para ele não se deve dormir e é preciso velar até à consumação. Ele segura-se nesse mundo absurdo, denuncia-lhe o carácter perecível. Procura o seu caminho no meio dos escombros.
Jaspers não espera mais nada de toda ontologia, pois pretende que nós tenhamos perdido a ingenuidade. Sabe que não podemos chegar a nada que transcenda o jogo mortal das aparências. Sabe que o fim do espírito é o fracasso. Demora-se ao longo das aventuras espirituais que a história nos oferece e revela impiedosamente a falha de cada sistema, a ilusão que salvou tudo, a pregação que não escondeu nada. Nesse mundo devastado, onde a impossibilidade de conhecer é demonstrada, onde o nada parece a única realidade e o desespero sem saída a única atitude, ele tenta reencontrar o fio de Ariadne que conduz aos segredos divinos.
Chestov, por sua vez, no meio a uma obra de admirável monotonia, agarrado incessantemente às suas verdades, demonstra sem trégua que o sistema mais compacto, o racionalismo mais universal acaba sempre por se escorar no irracional do pensamento humano. Não lhe escapa nenhuma das evidências irónicas ou das ridículas contradições que depreciam a razão. Só uma coisa lhe interessa e é a excepção, seja a da história do coração ou do espírito. Através das experiências dostoievskianas do condenado à morte, das aventuras furiosas do espírito nietzschiano, das imprecações de Hamlet ou da amarga aristocrática de um Ibsen, ele descobre, ilumina e engrandece a revolta humana contra o irremediável. Recusa as suas razões à razão e só começa a orientar os seus passos com alguma decisão no meio desse deserto desbotado em que todas as certeza se tornaram pedras». In Albert Camus, O Mito de Sísifo, Ensaio sobre o Absurdo, Livros do Brasil, ISBN 978-972-38-2759-0.

Cortesia de LBrasil/JDACT