sábado, 21 de março de 2015

Decifração em Textos Medievais. Apertio Libri. Arnaldo Espírito Santo. «… a busca de sentido per allegoriam foi o método mais comum seguido pelos comentadores patrísticos e medievais. Só no âmbito da Patrologia o substantivo allegoria (busca de isotopias no domínio da fundamentação da fé) ocorre 2316 vezes…»

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Conferências. Decifração
«(…) O pão parte-se e reparte-se tal como a Escritura se abre e comenta. O comentário ou decifração do conteúdo do texto é assim como parti-la em pedaços e distribuí-la como pedaços de pão. O homem interior (são palavras de Abelardo) alimenta-se e sustenta-se do alimento espiritual, tal como o homem exterior de alimento corporal. Metaforicamente o texto é como uma broa de pão de milho que tem uma côdea dura, a letra, que é necessário romper para chegar ao miolo do sentido interior. Aqueles comentários cuja leitura lenta e fastidiosa nos faz sorrir ou nos causa desprazer são, de facto, fruto de grande erudição e de profundas meditações. Em muitos casos representam a visão actualizada da leitura e são por isso um manancial de informações sobre a transmissão dos textos originais: daquilo que o tempo deixa cair como desinteressante, e daquilo que a modernidade conserva, apesar de antigo. O texto de Pedro Abelardo está cheio dessas alusões implícitas ao passado. Um texto medieval como este é constituído por uma primeira camada de origem bíblica, não só nas ideias mas no próprio vocabulário. Hoje, a leitura ou edição de um texto escrito sob o domínio desta forma mental necessita de um conhecimento não superficial da Bíblia, da doutrina da Igreja, da liturgia, e dos comentaristas anteriores. Uma afirmação tão anódina, aparentemente, como até que viesse Cristo para lhes abrir as escrituras remete para o comentário ao Apocalipse de Vitorino Petau que diz: Hic ergo aperit et resignat, quod ipse signaverat testamentum, isto é, foi Cristo que selou o Testamento, só ele o pode desselar porque ele é o conteúdo da própria Escriturar que antes da sua vinda era um texto como que enigmático. Ou para as palavras de Orígenes: Enquanto não veio Cristo, a lei estava perdida, fechado o discurso profético, velada a leitura do Velho Testamento, e até hoje, quando os Judeus lêem Moisés, têm um véu sobre o coração. Condenáveis são aqueles que amam o véu e censuram os comentadores que procuram descerrar o Véu. Outra referência, a das duas faces do texto, a espiritual e a corporal, a littera e o sensus interior, conduz-nos também a Orígenes que diz que o livro escrito por dentro e por fora simboliza o sentido espiritual (por dentro) e o sentido literal (por fora). De facto, a busca de sentido per allegoriam foi o método mais comum seguido pelos comentadores patrísticos e medievais. Só no âmbito da Patrologia o substantivo allegoria (busca de isotopias no domínio da fundamentação da fé) ocorre 2316 vezes, número extraordinariamente elevado em relação à ocorrência de tropologia (sentido moral) 704 vezes, e de anagoge e anagogia (sentido escatológico) 441 vezes. Foi mesmo criado o verbo allegorizare, formado a partir do grego, no sentido de interpretar alegoricamente. A primeira ocorrência surge, e com razão, em Tertuliano. Estava a criar-se uma autêntica escola de comentadores da Escritura, Tertuliano morreu em 230, que consolidava a sua linguagem técnica e os seus métodos, com grande influência, desde o início, do método alegórico usado por Fílon de Alexandria (primeira metade do séc. I d. C.) e antes dele aplicado pelos estóicos ao comentário dos poemas homéricos. Esta foi a tendência generalizada durante toda a idade patrística e medieval. Não é necessário um estudo aprofundado da aplicação em contexto das 233 ocorrências de per allegoriam para termos uma ideia clara da extensão do seu significado e dos seus usos e abusos. Darei apenas uma amostra, com a análise de algumas ocorrências, do método por excelência da hermenêutica medieval.
E começo por Tertuliano, que passo a resumir. Trata-se de argumentar sobre a ressurreição da carne. O que está em causa é a afirmação de Cristo caro non prodest, o corpo de nada aproveita não interessa, não importa, afirmação que parece prejudicar a doutrina da ressurreição. Tertuliano, no início da sua argumentação, esclarece que o sentido da afirmação deve ser tirado da materialidade das palavras. Uma observação importante como ponto de partida para os limites a estabelecer na interpretação alegórica. A seguir analisa o contexto em que a afirmação foi pronunciada: os discípulos tinham ficado assustados quando Cristo disse que lhes daria a sua carne a comer. Por isso corrige essa impressão dizendo que é o Espírito que vivifica e acrescentando que a carne de nada aproveita. Onde está então a alegoria? Está na interpretação do que se segue. Querendo Cristo significar o que se deve entender por Espírito, prosseguiu à maneira de explicação: As palavras que eu vos disse são espírito, são vida. Um pouco atrás o mesmo Cristo dissera: Quem ouve as minhas palavras... tem a vida eterna. Então, conclui Tertuliano, Cristo, ao instituir no discurso a palavra vivificadora, já que a palavra é espírito e vida, afirmou também que a palavra é a sua carne porque a palavra se fez carne, e por isso deve ser apetecida e devorada pelo ouvido, ruminada pela inteligência, e digerida pela fé». In Arnaldo Espírito Santo, Aperto Libri. Uma representação simbólica da descodificação textual, Da Decifração em Textos Medievais, coordenação de Ana Morais, Teresa Araújo, Rosário Paixão, IV Colóquio da Secção Portuguesa da Associação Hispânica de Literatura Medieval, Lisboa 2002, Edições Colibri, Lisboa, 2003, ISBN 972-772-425-6.

Cortesia de Colibri/JDACT