quarta-feira, 11 de março de 2015

Alma de Pássaro. Margarida R. Pinto. «Duas antes do Miguel chegar, mais uma quando o ouvi entrar e ainda outra, perto das seis. Levanto-me a custo sem acender a luz, tentando não acordar o Miguel que dorme do lado direito da cama de barriga para baixo…»

jdact e wikipedia

«Que difícil que é a vida dos homens, pensou ela. Eles não têm asas para voar por cima das coisas más». In Sophia de Mello Breyner Andresen, ‘A Fada Oriana

«Estou exausta. Completamente exausta. Quando o despertador toca, abro os olhos e levanto a cabeça que parece pesar mais do que o corpo todo. Carrego imediatamente no botão e o silêncio regressa ao quarto. Devo ter acordado pelo menos quatro vezes durante a noite. Duas antes do Miguel chegar, mais uma quando o ouvi entrar e ainda outra, perto das seis. Levanto-me a custo sem acender a luz, tentando não acordar o Miguel que dorme do lado direito da cama de barriga para baixo e a cara encostada à almofada. Apetece-me passar-lhe os dedos pelo cabelo ondulado, mas em vez disso. puxo as raízes junto às minhas têmporas, imaginando por um segundo como ficariam os meus olhos se os rasgasse numa plástica, enquanto massajo o couro cabeludo com a ponta dos dedos em movimentos circulares e me dirijo para o quarto da Carolina que ainda está a dormir. A luz entra de chofre pelas janelas da sala e da cozinha ainda sem cortinas e percorre o hall de entrada. Abro ligeiramente as persianas do quarto cor-de-rosa e arrumo mecanicamente os bonecos que estão encostados à parede junto aos pés da cama. Sento-me e começo a fazer-lhe festas até ela acordar. Saboreio o toque doce da sua pele, a seda dos seus cabelos louros em desalinho. Faz um esgar e vira a cabeça para o outro lado. Finalmente acorda, estende-me os braços e levanta-se, reclamando leite com chocolate e pão com doce. As pernas finas e pequenas ginasticam-se até à cozinha onde lhe preparo o pequeno-almoço. Vivo sozinha há três anos, desde que o Pedro saiu de casa. Um dia acordou, virou-se para mim e disse: Vou viver com a Sandra. Estou apaixonado por ela. Nem queria acreditar. A Sandra era a professora de Tae Kwon Do. Ele andava no Tae Kwon Do há um ano. De vez em quando, falava-me dela, mas nunca liguei. Ou então não quis ligar. As mulheres treinam o mecanismo da negação com excessiva facilidade, como um vício mesquinho que se adquire quase sem se dar por isso. Devia ter percebido que alguma coisa estava mal depois da Carolina ter nascido, mas estava demasiado absorvida pela miúda e pelo lançamento da editora. É que no fundo tive duas filhas ao mesmo tempo, andava exausta. Mas não tanto como agora. Sento-me na mesa de ripas amarelas, que deve ser de jardim, mas que eu achei que ficava bem na cozinha. A Carolina bebe por um copo com pozinhos brilhantes que rodopiam à volta do Winnie the Pooh e do seu amigo Tiger e lambuza o pão com doce que cai no pijama cor-de-rosa onde bonecos com antenas na cabeça pulam com os braços erguidos. Olha para mim aflita e passa o dedo pela nódoa. Desculpe, mãe. Respondo-lhe que não faz mal, que sei que não fez de propósito, e ela continua a comer e a chuchar o leite pela tampa do copo. Mãe.... Sim, filha. O Miguel está a dormir? Sim, querida. Posso ir lá dar-lhe um beijinho? Não, querida. A cara contorce-se numa expressão de tristeza. Oh... porquê? Dás logo à noite, está bem? E ele está cá, logo à noite? Começo a impacientar-me. Não sei, querida, logo se vê. Dá mais uma dentada, calculo que seja a penúltima. Mãe... Sim, filha. Por que é que o Miguel não vive cá em casa? Porque tem a casa dele. Mas a Sandra vive com o pai... Não, querida, o pai é que vive com a Sandra. Fica a olhar para mim de boca aberta, e vejo-lhe os neurónios a mil à hora dentro do cérebro, a darem as pernas e os braços uns aos outros. Vá, despacha-te, que já estamos atrasadas. Estamos sempre atrasadas. Regressamos ao quarto onde a visto em menos de um minuto e lhe calço uns ténis cor-de-rosa, pavorosos, que ela exibe com orgulho no colégio por causa da palavra mágica que têm bordada: Barbie. Por fim, penteio-a, e ela deixa-se levar, dócil como uma boneca. Pede-me para pôr aquele travessão que tem uma flor azul e que não encontro em lado nenhum; por isso, convenço-a a segurar o cabelo com outro, é muito mais giro, com o Tweety, é de crescida, estás a ver, e ponho o par no meu cabelo para provar que tenho razão. A mãe é mesmo maluca.


Maluca estava eu quando engravidei do Pedro, ele que nunca falou em filhos e sempre disse que não tinha estofo para ser pai. Estofo é para os bancos dos carros, respondi-lhe, quando ele começou com a conversa do costume, mesmo depois de lhe ter dito que estava grávida e que não ia, de certeza, fazer um aborto. Não tive a culpa. Qual é a probabilidade de ter duas ovulações num mês? Eu estava habituada a fazer as contas e conhecia os sintomas dos dias de perigo, mas não tenho nenhum alarme que liga e faz barulho se faço uma ovulação a seguir à outra. É raro, mas, às vezes, acontece, disse o médico, batendo com a caneta ritmicamente em cima da ficha, a menina está na idade, foi o seu relógio biológico. Pu… que pariu o relógio biológico. E o tipo todo contente. Porque é que os obstetras gostam tanto de ver as doentes grávidas? Deve ser uma tara como outra qualquer. O Pedro ainda reclamou, mas com 28 anos já não podia dizer que ainda era muito novo e que eu lhe estava a estragar a vida. Coitado do Pedro, se gostasse mesmo dele nunca lhe tinha feito uma maldade destas. Andávamos há seis meses, eu fazia trinta daí a uma semana e vivia obcecada com bebés. Agora, vivo obcecada com os fins-de-semana em que a Carolina vai para o pai e posso dormir até à uma da tarde, levar o pequeno-almoço à cama e ficar a namorar a tarde inteira com o Miguel, como dois adolescentes. Falta-me sono. Sono e tempo. Os bens mais escassos da minha vida. Entramos no carro e desfio a habitual corrente de recomendações: põe o cinto, não abras a janela, juízo na escola, venho-te buscar às seis. O caminho é um pára-arranca infernal e demoro vinte minutos a percorrer menos de sete quilómetros, como se fosse a primeira prova de um longo dia de trabalho e de chatices. Despedimo-nos com vários beijos e abraços e deixo a minha princesa entre vinte crianças e uma educadora com um ar absorto e doce. Quando chego à editora, o Nuno já lá está. Gel no cabelo, óculos de aros finos, aquele ar de menino bem comportado que lhe dá imenso charme. Com 42 anos, ainda parece um miúdo. E é. A um canto, um blusão preto de cabedal dormita em cima de um capacete também preto, e o ar está impregnado de um perfume qualquer da moda. Bom dia, estás bem? ,pergunta, sem levantar os olhos do écran do computador onde uma tabela cheia de números o absorve. Cansada, muito cansada. Desvia os olhos, arqueia as sobrancelhas e observa-me longamente. Mas sempre bonita. Isso é porque pus base, foi no elevador, em menos de vinte segundos, estou a ficar boa nisto. Não. Isso é porque és mesmo bonita. Abre a gaveta e retira de lá um embrulho comprido e fino. Toma. Comprei-te isto ontem. Abro o presente. É um coça-costas de madeira, daqueles que se vendem nas feiras. É para usares quando o Miguel estiver cansado. O Miguel nunca está cansado. Por isso é que ando com ele. Toma. Humor com humor se paga. Ligas demasiado ao sexo. Observo-lhe o polo, as calças de marca, o telemóvel topo de gama com  ligação wap e não sei que mer… mais em cima da secretária ao lado de uma caneta de colecção». In Margarida Rebelo Pinto, Alma de Pássaro, Oficina do Livro, 2001/2002, ISBN 972-857-955-1.

Cortesia OLivros/JDACT