segunda-feira, 30 de março de 2015

A Voz dos Deuses. João Aguiar. «Intrigado com tanto interesse, o meu tio atentou melhor no ferido e reparou que este era muito jovem, quase um adolescente. Encolheu os ombros e acedeu, pensando que o rapaz não sobreviveria até à madrugada seguinte e portanto não valia a pena contrariar a irmã»

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O oráculo
«(…) O argumento venceu o meu tio, embora ele sacrificasse com mais vontade aos deuses dos bosques e das águas e àqueles que auxiliam os comerciantes ou voltam as suas atenções para as doenças que afligem os homens. Na verdade, ninguém é insensato ao ponto de enfrentar o temível poder dessa deusa misteriosa que já reinava durante gerações sem conta quando as outras divindades se manifestaram pela primeira vez. Por isso Camalo cedeu à insistência da irmã e, como medida de precaução, reforçou a escolta com alguns escravos seus, armados. A viagem até Baesuris decorreu sem incidentes; fizeram uma estada de três dias nesta cidade, durante a qual o meu tio realizou alguns negócios rendosos, o que melhorou a sua disposição, e a caravana rumou para norte ao longo do Anas, que naquele troço marca a fronteira com a Bética. Para maior comodidade acampavam sempre junto do rio. E foi a um dia de marcha de Myrtilis que, ao pôr-do-Sol, quando pararam no sítio escolhido para pernoitar, um dos homens da escolta, ao procurar lenha seca para a fogueira, deparou com um corpo estendido atrás de uma moita. Trouxeram-no para junto do fogo e o meu tio, depois de o examinar com cuidado, ficou persuadido de que nada havia a fazer porque o forasteiro tinha uma grande ferida nas costas, já infectada. Pegou no punhal para evitar maiores sofrimentos ao moribundo mas uma sombra interpôs-se entre ele e o corpo inerte; era Camala, de mãos erguidas em súplica. Não podemos salvá-lo, explicou ele à irmã, só podemos evitar que sofra mais ao acordar, se chegar a acordar. Deixa-me tratar dele, respondeu Camala, deixa-me tentar. Se não der resultado, então...
Intrigado com tanto interesse, o meu tio atentou melhor no ferido e reparou que este era muito jovem, quase um adolescente. Encolheu os ombros e acedeu, pensando que o rapaz não sobreviveria até à madrugada seguinte e portanto não valia a pena contrariar a irmã. Enganou-se. Camala velou toda a noite, preparando unguentos e infusões, conhecia as virtudes de muitas ervas e as fórmulas mágicas que reforçam os seus poderes. Sem atender às repetidas intimações para repousar e dormir, não abandonou o ferido um só instante e quando o Sol nasceu viram-na, com os olhos vermelhos e pisados da vigília mas exibindo um sorriso triunfante, verter sobre a fogueira uma libação ao deus da luz. O jovem não recobrara completamente os sentidos, porém abrira os olhos durante um breve momento, bebera um caldo de carne e adormecera, aparentemente tranquilo. Camala vencera as trevas. Nessa altura (tarde demais, como ele confessou), o meu tio suspeitou o que estava a acontecer. Quem pode compreender os sentimentos das mulheres? Meio morto, magro como um esqueleto, coberto de porcaria, o estrangeiro conquistara, assim mesmo, o amor da minha mãe. Nesse dia a caravana não prosseguiu o caminho e após uma discussão quase violenta foram mandados servos a Myrtilis para vender parte da mercadoria a comerciantes de confiança e comprar mais mantimentos. Entretanto, Camala mantinha-se ao pé do doente. O meu tio perdeu a paciência e declarou que se recusava a permanecer ali; a caravana regressou a Balsa.
Durante longos dias, a minha mãe lutou para arrancar o desconhecido ao poder dos espíritos da morte. Aplicou bálsamos e compressas sobre a ferida, chamou em seu auxílio todos os deuses e deusas que protegem a saúde dos mortais e, para não descurar nenhuma oportunidade, consultou os vizinhos que ela sabia terem sobrevivido a feridas semelhantes. O enfermo voltou finalmente ao mundo dos vivos. O repouso, o tratamento e a boa alimentação mudaram completamente o seu aspecto: era, de facto, atraente, bem proporcionado, com longos cabelos cor de cobre polido e olhos verdes. Quanto à minha mãe, devia ser muito bonita (ao crescer, eu ainda pude encontrar os vestígios dessa beleza); o sangue fenício deixara a sua marca nos traços finos e puros do rosto, no cabelo, de um negro carregado, e nos olhos também negros, enormes e com a forma harmoniosa das amêndoas. Era impossível que não se sentissem atraídos um pelo outro. Mesmo antes de saber quem ele era, Camala decidiu que não haveria outro homem na sua vida nem na sua cama. Esse amor transformou-se numa paixão absoluta e doentia quando o rapaz, ao recuperar a consciência, pôde falar de si próprio.
Segundo disse chamava-se Tongétamo e era filho do rei dos Brácaros, um povo que habita a Calécia, nome que dão à parte da Lusitânia situada ao norte do rio Durius. Brácara, a capital do reino, é uma cidade importante quando comparada com a maioria das povoações daquela região, embora não passe de uma grande aldeia fortificada ao lado das nossas cidades. Ainda hoje as tribos do Centro e Norte da Ibéria vivem em estado de efervescência latente; naquela época, a guerra aberta era uma situação normal e os períodos de paz uma excepção. Os pequenos reis e príncipes, mesmo os simples chefes tribais, faziam da guerra o seu ofício, por necessidade ou gosto, e quando o Inverno impedia as expedições ou os inimigos (isto é, todos os vizinhos que não tivessem antepassados comuns) se mostravam demasiado fortes, havia ainda o recurso à guerra civil. Eram raras as famílias reinantes da Lusitânia sem uma interminável história de duelos, assassinatos e ajustes de contas.
Tongétamo, terceiro filho de Tongétamo, rei dos Brácaros, fora um dos poucos sobreviventes da revolta que destronara seu pai e aniquilara toda a família, incluindo as mulheres e as crianças, mesmo as recém-nascidas. No último dia de luta, o jovem, à frente de um punhado de homens fiéis, rompera o cerco e lograra abandonar a Cidadela em chamas. O pequeno bando errara durante algum tempo pelos arredores de Brácara, escondendo-se nas colinas, mas o Inverno era duríssimo e os caminhos transitáveis estavam vigiados pelo inimigo. Os companheiros de Tongétamo começaram a sucumbir à fome e ao frio. Os que resistiram encaminharam-se para o Sul, atravessaram o Durius e procuraram, em vão, um local que lhes proporcionasse refúgio e repouso. Enfraquecidos, acossados pelos partidários do usurpador, eram somente quinze fantasmas esfomeados quando chegaram às margens do Tagus e antes da travessia deste rio mais cinco morreram com febres». In João Aguiar, A Voz dos Deuses, 1984, composição de Maria Samagaio, 2005, Lisboa, Sandra Ferreira, 2007, Grafiasa, Asa Editores, Rio Tinto, ISBN 972-41-1072-9.

Cortesia de ASAEditores/JDACT