segunda-feira, 16 de março de 2015

A Queda. Ensaio. Albert Camus. «… na minha pequena aldeia, numa acção de represália, um oficial alemão pediu delicadamente a uma velhinha para fazer a gentileza de escolher entre os seus dois filhos o que seria fuzilado? Escolher, já imaginou? Aquele? Não, este aqui»

jdact e wikipedia

A Queda
«(…) Pois bem, é esta a organização deles. Quer ter uma vida limpa? Como todas as pessoas? É claro que a resposta é sim. Como dizer não? Está bem. Pois vamos limpá-lo. Pegue aí um emprego, uma família, férias organizadas. E os pequenos dentes cravam-se na carne até aos ossos. Mas estou sendo injusto. Não se deve dizer que a organização é deles. Ela é nossa. Afinal de contas, é o caso de saber quem vai limpar o outro. Finalmente, trazem nossa genebra. À sua prosperidade. Sim, o gorila abriu a boca para me chamar de doutor. Nesta terra, tudo é doutor ou professor. Gostam de mostrar-se respeitosos, por bondade e por modéstia. Entre eles, pelo menos, a maldade não é uma instituição nacional. Além disso, não sou médico, embora licenciado. Se quer mesmo saber, eu era advogado antes de vir para cá. Agora, sou juiz-penitente. Mas permita que me apresente: Jean-Baptiste Clamence, seu criado. É um prazer conhecê-lo. Sem dúvida, deve ser um homem de negócios, não é? Mais ou menos? Excelente resposta! E também judiciosa: estamos apenas mais ou menos em todas as coisas. Vejamos, deixe-me fazer de detective. Tem mais ou menos a minha idade, o olhar esclarecido dos quarentões que já fizeram de tudo um pouco. Está mais ou menos bem vestido, quer dizer, como as pessoas se trajam no nosso país, e tem as mãos finas. Portanto, mais ou menos um burguês! Mas um burguês requintado! Implicar com os imperfeitos do subjuntivo, na realidade, demonstra duplamente a sua cultura: em primeiro lugar, porque os reconhece, e porque, a seguir, eles o irritam. Enfim, eu o divirto, o que, sem vaidade de minha parte, pressupõe no senhor uma certa abertura de espírito. O senhor é, portanto, mais ou menos ... Mas que importa? As profissões me interessam menos do que as seitas. Permita-me que lhe faça duas perguntas, e só me responda se não as julgar indiscretas. O senhor possui bens? Alguns? Bom. Repartiu-os com os pobres? Não. É, portanto, o que chamo um saduceu. Se não tem familiaridade com as Escrituras, reconheço que não lhe adiantará muito. Adianta? Então conhece as Escrituras? Decididamente, o senhor me interessa.  Quanto a mim ... Bem, julgue por si mesmo. Pela estatura, pelos ombros e por este rosto que tantas vezes me disseram ser feroz, eu teria mais o aspecto de um jogador de desporto radical que outra coisa, não é? Mas, a julgar pela conversa, é preciso conceder-me um pouco de refinamento. O camelo que forneceu a pele do meu sobretudo sofria, sem dúvida, de sarna; em compensação, tenho as unhas tratadas. Eu também sou esclarecido e, no entanto, estou-me abrindo com o senhor sem precauções, baseado unicamente na sua aparência. Enfim, apesar de minhas boas maneiras e de meu belo linguajar, sou um frequentador assíduo dos bares de marinheiros do Zeedijk. Mas chega, não procure mais. Meu trabalho é duplo, eis tudo, como a criatura. Já lhe disse, sou juiz-penitente. A única coisa simples no meu caso é que nada tenho. Sim, fui rico; não, nada reparti com os outros. O que prova isso? Que eu também era um saduceu ... Oh! Está ouvindo as sereias do porto? Esta noite vai haver neblina sobre o Zuyderzee. Já vai embora? Desculpe-me se o atrasei. Se me permite, não pagará nada. Está em minha casa no Mexico-City e tive imenso prazer em recebê-lo. Amanhã, certamente estarei aqui, como nas outras noites, e aceitarei, de bom grado, seu convite. Seu caminho ... Bem ... Mas, se não vê nenhum inconveniente, seria mais simples acompanhá-lo até ao porto. De lá, contornando o bairro judeu, encontrará as belas avenidas, onde desfilam os bondes carregados de flores e de números tonitruantes. Seu hotel certamente fica numa dessas avenidas, no Damrak. Tenha a bondade, primeiro o senhor. Quando a mim, moro no bairro judeu, ou no que era assim chamado até ao momento em que os hitlerianos abriram espaço. Que limpeza! Setenta e cinco mil judeus deportados ou assassinados, é a limpeza pelo vácuo. Admiro esta aplicação, esta paciência metódica! Quando não se tem carácter, é preciso mesmo valer-se de um método. Nesse caso, ele fez milagres (?), sem dúvida alguma, e eu moro no local em que foi cometido um dos maiores crimes da história. Talvez seja isso que me ajude a compreender o gorila e a sua desconfiança. Desse modo, posso lutar contra essa tendência de temperamento que me inclina de modo irresistível à simpatia. Quando vejo uma cara nova, algo dentro de mim faz soar o alarme. Devagar. Perigo! Mesmo quando a simpatia é intensa, tenho cautela. Sabe que na minha pequena aldeia, numa acção de represália, um oficial alemão pediu delicadamente a uma velhinha para fazer a gentileza de escolher entre os seus dois filhos o que seria fuzilado? Escolher, já imaginou? Aquele? Não, este aqui. E vê-lo partir. Não insistamos nisso, mas creia-me, caro senhor, todas as surpresas são possíveis. Conheci um coração puro que recusava a desconfiança. Era pacifista, libertário e amava com um único amor abrangente toda a humanidade e os animais. Sim, uma alma de elite, com toda a certeza. Pois bem, durante as últimas guerras religiosas, na Europa, retirou-se para o campo. Escreveu na entrada de sua casa: De onde quer que venha, entre e seja bem-vindo. Quem, segundo o senhor, respondeu a este belo convite? Os milicianos, que entraram como se a casa fosse deles e o estriparam». In AlbertCamus, La Chute, Éditions Gallimard, 1956, A Queda, Best Seller, Editorial Record, tradução de Valerie Rumjanek, Best Bolso, 2007, Brasil, ISBN 978-85-7799-008-5.

Cortesia de BBolso/JDACT