terça-feira, 31 de março de 2015

Poesia no 31. Nobel de 2011. Tomas Tranströmer (1931-2015). «A renúncia é a libertação. Não querer é poder. A liberdade é a possibilidade do isolamento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Primeiro sê livre, depois pede a liberdade»

jdact e wikipedia

O Casal
«Apagam a luz e o globo branco brilha
um instante e, depois, dissolve-se, como um comprimido
num copo de escuridão. Depois, aumenta.
As paredes do hotel disparam para a escuridão do céu.

Os seus movimentos tornaram-se mais suaves e dormem,
mas os seus pensamentos mais secretos começam a encontrar-se
como duas cores que se encontram e escorrem juntas
sobre o papel molhado de uma pintura de um menino de escola.

Está escuro e silencioso. A cidade, contudo, aproximou-se
esta noite. Com as suas janelas desligadas. Vieram casas.
Mantêm-se juntas e muito perto, esperando,
uma multidão de gente de rostos brancos».


Depois de uma Morte
«Uma vez foi um choque,
que deixou para trás uma longa e cintilante cauda de cometa.
Mantém-nos dentro de casa. Torna nevada a imagem da TV.
Aquieta-se em gotas frias sobre os fios de telefone.

Pode-se ainda ir de skis devagar sob o sol de inverno
através de arbustos onde algumas folhas se demoram.
Parecem páginas arrancadas de velhas listas telefónicas.
Nomes engolidos pelo frio.

É ainda maravilhoso sentir o coração a bater,
mas a sombra parece muitas vezes mais real que o corpo.
O samurai parece insignificante
por trás da armadura de escamas do dragão negro.
Tomas Tranströmer (1931-2015), ’20 Poemas’
Tradução do inglês de Maria Catela

JDACT

História e Estudo no 31. A Data de Nascimento de Afonso Henriques. Abel Estefânio. «O autor anónimo informa que Teotónio ‘foi colocado na cinza e no cilício, segundo a tradição cristã e, perfeitamente na posse das suas faculdades, encarou a morte com alegria’»

Cortesia de wikipedia e jdact

Sobre a data em que São Teotónio morreu. O lapsus calami do dia da semana
«(…) Podemos fazer o exercício de verificar em que ano próximo de 1162 é que se encontra uma sexta-feira a 18 de Fevereiro. Por consulta das tabelas do Cappeli verificamos que o ano mais próximo do de 1162 em que isso acontece, é o ano de 1166. Foi, talvez por esta razão que Joaquim Encarnação, cónego regrante de Santa Cruz na segunda metade do século XVIII, tal como o já fizera o autor dos Acta Sanctorum, considerou ser este o ano em que morreu o nosso primeiro santo. Isto apesar de ainda ter visto o letreiro porém, que se pôz na sepultura do sancto, no Capitulo, se diz ser sua morte na era de 1200, que vem a ser anno de 1162, e é o que seguem os nossos Historiadores ordinariamente. A posição de J. Encarnação é muito interessante para esta pesquisa. Confesso que também eu comecei por admitir que São Teotónio tinha morrido em 1166, baseado no feria VI e que, portanto, poderia haver erro na inscrição ou leitura da Era indicada no sepulcro. A inscrição referida é a seguinte:

[in :] XII : K(a)L(endas) : M(a)RCII : OBIIT : DOmNUS : THEOTONIUS : P(r)IMUS : P(r)IOR : ET : PATER : MONASTEERII : SanCtE : + [crucis] : E(ra) : M : C [C]

Actualmente faltam os extremos da inscrição, que parecem ter sido cortados, em data que desconhecemos, quando a tampa do sarcófago já se encontrava no altar da capela de São Teotónio, só se lendo, no final da inscrição, MC. Mário Barroca considerou a data de MC [C]. Visitei a Igreja de Santa Cruz de Coimbra para analisar a inscrição ao longo da secção lateral da tampa do sarcófago, hoje a servir de mesa de altar na capela que se ergue na parede sul da Sala do Capítulo, e parece-me que, de facto, não há espaço para conter MC[CIIII], mesmo de forma condensada como aparece algumas vezes em epígrafes da época. Segundo M. Barroca, as semelhanças desta inscrição com a do sarcófago do bispo de Coimbra, Miguel Salomão, que faleceu em 1180, levam a admitir que as duas tampas tenham sido executadas em momentos não muito afastadas entre si, pouco depois da morte do bispo de Coimbra. Perante estes factos, os especialistas são unânimes em considerar que o erro na data da morte de São Teotónio não se encontra na indicação do ano, mas sim no dia da semana. O que poderia então levar à indicação do feria VI? Os erros nem sempre poderão ser explicados de forma satisfatória. Admitimos contudo uma possibilidade. A Era de 1200 assinalada na epígrafe da tampa do sepulcro de São Teotónio corresponderia, pois, ao ano da encarnação de 1162, segundo o cômputo de Pisa, hipoteticamente utilizado na Vita Theotonii, como se viu do estudo dos elementos rasurados da data de fundação do Mosteiro de Santa Cruz. Para a determinação do dia da semana, o ano da encarnação necessita sempre de duas letras dominicais. Começando a 25 de Março de 1161, os dias da semana desse ano até 31 de Dezembro, seriam determinados no calendário perpétuo pela letra dominical do ano do nascimento de 1161; um A. Para os dias da semana, entre 1 de Janeiro a 24 de Março, deveria usar-se a letra dominical do ano de 1162; um G, o que permitiria determinar correctamente que o 18 de Fevereiro tinha sido um domingo. É possível que a confusão entre o procedimento que normalmente se utilizava nos anos bissextos (que também necessita de duas letras dominicais) e o que se deve utilizar no ano da encarnação tenha induzido o uso indevido da letra dominical do ano de 1160; um B. Daí resultaria a atribuição incorrecta de uma sexta-feira ao dia 18 de Fevereiro.

Sobre o mês em que decorreram as cerimónias fúnebres
Merece a pena analisar a descrição da cerimónia fúnebre tal como foi descrita pelo discípulo anónimo, na busca de novos indícios sobre o problema da data da morte. O autor anónimo informa que Teotónio foi colocado na cinza e no cilício, segundo a tradição cristã e, perfeitamente na posse das suas faculdades, encarou a morte com alegria. Armando Martins fornece-nos uma descrição mais detalhada destes rituais de cinza e cilício, em que o moribundo era colocado no chão, pondo-lhe a cabeça sobre uma pedra dura, coberta de cinza, onde era deixado até expirar. Como a morte de São Teotónio ocorreu na própria canónica, in congregatione, seriam celebradas trinta missas, nos trinta dias imediatos e, do primeiro ao sétimo dia, depois da morte, diariamente, por ele seria oferecido pela comunidade todo o ofício dos defuntos, missas, e matinas de nove lições. No trigésimo dia, depois do ofício, por ele se diriam cinco salmos e se faria procissão ao túmulo. No decorrer desses trinta dias, quotidianamente, na canónica seria dada aos pobres a ração completa, prebenda, a que o defunto teria direito, como se ainda estivesse presente. Estas cerimónias arrastar-se-iam assim até 18 de Março seguinte. São deste mês dois importantes documentos que beneficiam o Mosteiro de Santa Cruz. São eles a Karta Liberatis do bispo de Coimbra Miguel Salomão e a doação de Afonso Henriques da mata de Aljazede (mata do Louriçal, no concelho de Pombal). As doações e privilégios não poderiam deixar de estar associadas ao facto, embora não o nomeiem expressamente. Aos dois documentos acima referidos, poderíamos ainda juntar a carta de Afonso Henriques ao papa Alexandre II, em que declara ter fundado o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra para dele fazer mercê ao pontífice, e em que pede nova confirmação de todos os diplomas régios e episcopais a favor do mosteiro. O mesmo se diga da suplicatio do bispo Miguel ao papa Alexandre III para confirmar a carta de liberdade concedida ao Mosteiro de Santa Cruz por ele em Março de 1162». In Abel Estefânio, A Data de Nascimento de Afonso I, Medievalista, nº 8, 2010, Instituto de Estudos Medievais, direcção de José Mattoso, ISSN 1646-740X.

Cortesia de Medievalista/JDACT

Ensaio no 31. O Mito do Oriente na Literatura Portuguesa. Álvaro Manuel Machado. «[…] também el-rei estava fóra da cidade em uns paços, que seriam dela quási meia légua, entre palmares e a gente nóbre aposentada por derredor, ao modo que cá temos as quintans…»

Cortesia de wikipedia

Os mitos históricos são uma forma de consciência fantasmagórica com que um povo define a sua posição e a sua vontade na história do mundo.

Oriente e mitologia dos Descobrimentos. De João Barros a Bocage
Descobrimentos. Classicismo e Mito do Longínquo. João de Barros
«(…) Este breve exemplo, muito específico, remete-nos para a ideia inicial: humanista estático, pouco ou nada viajando (além da viagem citada, o historiador fez apenas uma outra, em 1535, pela costa do Brasil, numa malograda tentativa de tomar posse e povoar uma capitania doada pelo rei), João Barros transfere para a palavra, mais propriamente, para a fixidez da palavra a partir da aprendizagem clássica, a sua fascinação pelo longínquo desconhecido. E assim, suponho que sem cairmos em interpretações fantasistas, poderemos dizer que, para lá do facto de João Barros ser o cronista oficial encarregado destas cousas das partes do Oriente, como diz o próprio historiador evocando a intenção de Manuel I, concretizada por João III, consagrando o escritor os dias ao ofício e parte das noites a esta escritura da vossa Ásia, cumprindo com o desejo que sempre tive desta empresa, para lá desse encargo oficial, houve da parte de João Barros uma verdadeira fascinação pelo Oriente. Tal fascinação corresponde, é certo, ao rigor documental: Sousa Viterbo, citado por António Baião na referida introdução ao volume I das Décadas, diz em O orientalismo português no século XVI que João Barros era não só possuidor de colecções de manuscritos orientais, como também conhecedor das línguas pérsica e arábica. Todavia, para lá desse rigor, ela corresponde sobretudo, parece-me, a uma visão cósmica em que Portugal surge nitidamente engrandecido pelo próprio risco de sair dos seus limites europeus e ir ao encontro do Oriente. Tal atitude está bem patente, sobretudo, na Primeira Década (Lisboa, 1552), intitulada Dos feitos que os Portugueses fizeram no descobrimento e conquista dos mares e terras do Oriente, mas ela prolonga-se ainda nas Décadas II (Lisboa, 1553), III (Lisboa, 1563) e IV (incompleta, edição de João Baptista Lavanha, refundida, Madrid, 1615).
O risco que implicava esse fascínio mítico, podemos constatá-lo desde o início da Primeira Década, quando se evoca os conselhos gerais reunidos por Manuel I para discutir o descobrimento da Índia: Sobre o qual caso […] teve alguns gerais conselhos: em que ouve muitos e diferentes vótos, os mais foram que a Índia não se devia descobrir. Por que, além de trazer consigo muitas obrigações por ser estado mui remoto para poder conquistar e conservar, debilitaria tanto as forças do reino que ficaria ele sem as necessárias para a sua conservação. Um pouco mais adiante, aduzindo das razões materiais que o levam a defender o descobrimento da Índia e daquelas terras orientais, o rei evoca perante Vasco Gama as fabulosas riquezas dessas paragens longínquas em termos igualmente míticos, pois a experiência a que alude em nada de concreto se baseia. Por outro lado, no capítulo VII, fazendo uma universal relação da província da Índia, João Barros entrega-se à minúcia geográfica. Todavia, apesar das suas pretensões científicas nem por isso a terra a que propriamente chama Índia deixa de ter a aura mítica de algo antiquíssimo, fora do tempo, fabuloso. Atentemos, por exemplo, na seguinte passagem descritiva, a qual, para além da descrição concreta, ascende, creio, a um plano de mítica visão de terras desconhecidas, descrição feita por um homem culto que delas nunca teve conhecimento directo e que laboriosamente as imaginou As quáis [fontes dos rios], peró que sôbre a terra arrebentem distintas em os montes a que Ptolomeu chama Imáo, e os habitadores deles Dalanguér e Nangracot, são estes tão conjuntos uns aos outros, que quási querem esconder as fontes destes dois rios. E, segundo fama do gentio comarcão, parece que ambos nascem de uma veia comum, donde nasceu a fábula dos dois irmãos que anda entre êles …
João Barros imagina mesmo uma faustosa cena real bem do Oriente, cena fora da cidade que compara à idílica contemplação do campo nas nossas quintans, ou seja, quintas, arcaísmo que na toponímica geral ainda hoje se conserva: […] também el-rei estava fóra da cidade em uns paços, que seriam dela quási meia légua, entre palmares e a gente nóbre aposentada por derredor, ao modo que cá temos as quintans. Pode dizer-se que nestas passagens, como noutras da obra deste rigoroso clássico da história da nossa expansão ultramarina, oficialmente glorificado, o símbolo, que constitui a essência mítica da descrição histórica e que consagra a mitologia como motor da história, ilumina os acontecimentos cronologicamente situados, conferindo-lhes uma significação transhistórica. Por outro lado, a própria ideia, sem dúvida dogmática e pouco humanista, de uma evangelização necessária e útil, é posta em causa, e é-o por dois motivos. Primeiro, pela premonição astrológica de um desastre, evocado no capítulo IX. fizera [um dos principais mouros de Calecut] a pergunta a algumas pessoas que usam do ofício de astrologia e doutras artes que daqui dependem, uma das quais pessoas […] em um vaso de água lhe mostrára as naus perdidas, e mais outras a vela, que dizia partirem de mui longe para vir à Índia, que a gente de elas seria total destruição dos mouros daquelas partes.[…]Finalmente com esta história, […] a conclusão da consulta acabou que buscasse todos os modos possíveis, para sumir os nossos navios no fundo do mar, e que as pessoas, como ficassem em terra, um a um os iriam gastando, com que não houvesse memória dêles nem do que tinham descoberto». In Álvaro Manuel Machado, O Mito do Oriente na Literatura Portuguesa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Instituto Camões, Biblioteca Breve, Conselho da Europa, Lisboa, 1983.

Cortesia de ICamões/JDACT

Música no 31. Deolinda. «A ironia é o primeiro indício de que a consciência se tornou consciente. Uma interpretação irónica da vida, uma aceitação indiferente das coisas, são o melhor remédio para o sofrimento, posto que o não sejam para as razões que há para sofrer»

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«Olha a banda filarmónica,
a tocar na minha rua.
Vai na banda o meu amor
a soprar a sua tuba.
Ele já tocou trombone,
clarinete e ferrinhos,
só lhe falta o meu nome
suspirado aos meus ouvidos.

Toda a gente, - fon-fon-fon-fon -
só desdizem o que eu digo:
... Que a tuba - fon-fon-fon-fon -
tem tão pouco romantismo...
Mas ele toca - fon-fon-fon-fon -
e o meu coração rendido
só responde - fon-fon-fon-fon -
com ternura e carinho.

Os meus pais já me disseram:
Ó Filha, não sejas louca!
Que as Variações de Goldberg
p'lo Glenn Gould é que são boas!
Mas a música erudita
não faz grande efeito em mim:
do CCB, gosto da vista;
da Gulbenkian, o jardim.

Toda a gente -fon-fon-fon-fon.
só desdizem o que eu digo:
... Que a tuba -fon-fon-fon-fon-
tem tão pouco romantismo...
Mas ele toca - fon-fon-fon -
e cá dentro soam sinos!
No meu peito -fon-fon-fon-fon-
a tuba é que me dá ritmo.


Gozam as minhas amigas
com o meu gosto musical
que a cena é electroacústica
e a moda a experimental...
E nem me falem do rock,
dos samplers e discotecas,
não entendo o hip-hop,
e o que é top é uma seca!

Toda a gente -fon-fon-fon-fon-
só desdizem o que eu digo:
... Que a tuba -fon-fon-fon-fon-
tem tão pouco romantismo...
Mas ele toca -fon-fon-fon-fon-
e, às vezes, não me domino.
Mando todos -fon-fon-fon-fon-
que ele vai é ficar comigo!

Mas ele só toca a tuba
e quando a tuba não toca,
dizem que ele continua;
que em vez de beijar, ele sopra...

Toda a gente - fon-fon-fon.fon -
só desdizem o que eu digo:
... Que a tuba - fon-fon-fon-fon -
tem tão pouco romantismo...
Mas ele toca -fon-fon-fon-fon-
e é a fanfarra que eu sigo.
Se o amor é fon fon fon fon
que se lixe o romantismo!»
In Deolinda, ‘Canção ao lado’

JDACT

segunda-feira, 30 de março de 2015

Ensaio sobre o Absurdo. O Mito de Sísifo. Albert Camus. «… acaba sempre por se escorar no irracional do pensamento humano. Não lhe escapa nenhuma das evidências irónicas ou das ridículas contradições que depreciam a razão. Só uma coisa lhe interessa e é a excepção, seja a da história do coração ou do espírito»

Cortesia de wikipedia

Os muros absurdos
(…) Heidegger considera friamente a condição humana e anuncia que esta existência é humilhada. A única realidade é a inquietação em toda a escala dos seres. Para o homem perdido no mundo e os seus divertimentos, essa inquietação é um medo breve e fugidio. Mas, quando esse medo toma consciência dele mesmo, se transforma em angústia, o clima permanente do homem lúcido em que a existência se redescobre. Esse professor de filosofia escreve sem nenhum tremor e na linguagem mais abstracta do mundo que o carácter finito e limitado da existência humana é mais primordial que o próprio homem. Interessa-se por Kant mas é para reconhecer o carácter acanhado de sua Razão pura. É para concluir, nos termos das suas análises, que o mundo nada mais consegue oferecer ao homem angustiado. Essa inquietação a tal ponto lhe parece, na verdade, ultrapassar as categorias do raciocínio, que ele pensa unicamente nela e não fala de outra coisa. Enumera as suas faces: de tédio, quando o homem comum procura nivelá-la com ele mesmo, e mitigá-la; de terror, quando o espírito contempla a morte. Ele também não separa a consciência do absurdo. A consciência da morte é o apelo da inquietação e a existência recorre então a um apelo próprio por intermédio da consciência. É a voz da própria angústia e convoca a existência a retornar ela própria da sua perda no seu anónimo. Também para ele não se deve dormir e é preciso velar até à consumação. Ele segura-se nesse mundo absurdo, denuncia-lhe o carácter perecível. Procura o seu caminho no meio dos escombros.
Jaspers não espera mais nada de toda ontologia, pois pretende que nós tenhamos perdido a ingenuidade. Sabe que não podemos chegar a nada que transcenda o jogo mortal das aparências. Sabe que o fim do espírito é o fracasso. Demora-se ao longo das aventuras espirituais que a história nos oferece e revela impiedosamente a falha de cada sistema, a ilusão que salvou tudo, a pregação que não escondeu nada. Nesse mundo devastado, onde a impossibilidade de conhecer é demonstrada, onde o nada parece a única realidade e o desespero sem saída a única atitude, ele tenta reencontrar o fio de Ariadne que conduz aos segredos divinos.
Chestov, por sua vez, no meio a uma obra de admirável monotonia, agarrado incessantemente às suas verdades, demonstra sem trégua que o sistema mais compacto, o racionalismo mais universal acaba sempre por se escorar no irracional do pensamento humano. Não lhe escapa nenhuma das evidências irónicas ou das ridículas contradições que depreciam a razão. Só uma coisa lhe interessa e é a excepção, seja a da história do coração ou do espírito. Através das experiências dostoievskianas do condenado à morte, das aventuras furiosas do espírito nietzschiano, das imprecações de Hamlet ou da amarga aristocrática de um Ibsen, ele descobre, ilumina e engrandece a revolta humana contra o irremediável. Recusa as suas razões à razão e só começa a orientar os seus passos com alguma decisão no meio desse deserto desbotado em que todas as certeza se tornaram pedras». In Albert Camus, O Mito de Sísifo, Ensaio sobre o Absurdo, Livros do Brasil, ISBN 978-972-38-2759-0.

Cortesia de LBrasil/JDACT

Neve. Nobel da Literatura. Orhan Pamuk. «Quando, às dez horas da noite, três horas depois do previsto, o autocarro começou a avançar lentamente pelas ruas cobertas de neve de Kars, Ka não reconheceu a cidade de modo algum. Ele nem ao menos viu a estação ferroviária, aonde ele chegara vinte anos antes…»

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O silêncio da neve A viagem para Kars
«(…) Ainda nos tempos de escola, nosso herói insistia em se assinar como Ka nas suas tarefas e provas; ele assinou Ka nos formulários de inscrição da universidade e aproveitava todas as oportunidades para defender o seu direito de continuar a fazê-lo, ainda que isso implicasse conflito com professores e funcionários públicos. A mãe, a sua família e os seus amigos o chamavam de Ka e, tendo também publicado uma colectânea de poesias sob esse nome, gozava de uma pequena fama enigmática como Ka, tanto na Turquia como nos círculos turcos da Alemanha. Isso é tudo o que posso adiantar por enquanto. Como o motorista do autocarro desejou aos passageiros uma boa viagem quando partimos da estação rodoviária de Erzurum, permitam-me acrescentar apenas estas palavras: Que a sua estrada esteja aberta, meu caro Ka. Mas não quero enganá-los. Sou um velho amigo de Ka e começo esta história sabendo tudo o que vai acontecer com ele em Kars. Depois de deixar Horasan, o autocarro rumou para o norte, indo directamente para Kars. Enquanto subia pela pista tortuosa, o motorista teve de pi­sar com força no travão para evitar chocar-se contra um cavalo que surgira do nada, puxando uma carroça, numa das curvas fechadas, e Ka acordou. O medo já havia criado um forte sentimento de solidariedade entre os passageiros, e não demorou muito para Ka sentir-se um deles. Embora estivesse sentado logo atrás do motorista, Ka logo estava agindo exactamente como os passageiros atrás dele: toda vez que o autocarro diminuía a velocidade para fazer uma curva ou evitar cair num precipício, ele se levantava para ver melhor; quando o passageiro diligente que se dispusera a ajudar o motorista limpando a condensação do pára-brisa deixava de limpar uma área do vidro, Ka a apontava com o indicador (colaboração que passava despercebida), e quando a tempestade ficou tão forte que as escovas já não conseguiam impedir que a neve se acumulasse sobre o pára-brisa, Ka juntou-se ao motorista para tentar adivinhar o caminho.
Era impossível ler as placas rodoviárias, que estavam cobertas de neve. Quando a tempestade de neve começou a mostrar a sua fúria, o motorista desligou o farol alto e diminuiu as luzes dentro do autocarro, na esperança de fazer a estrada surgir da penumbra. Os passageiros caíram num silêncio apreensivo, olhos fitos na cena lá fora: a neve cobrindo as ruas das aldeias pobres, as casas periclitantes de um só pavimento, parcamente iluminadas, as estradas para aldeias mais distantes, já fechadas, e as ravinas que mal se podiam ver para além das luzes dos postes. Quando falavam, era num murmúrio. Assim, foi quase cochichando que o passageiro ao lado de Ka, o homem em cujo ombro Ka adormecera pouco antes, perguntou-lhe por que estava indo para Kars. Era fácil perceber que Ka não era do lugar. Sou jornalista, respondeu Ka baixinho. O que era mentira. Estou interessado nas eleições municipais, e também nas jovens que se suicidaram. Isso era verdade. Quando o autarca de Kars foi assassinado, todos os jornais de Istambul deram a notícia, respondeu o vizinho de Ka. E tem sido a mesma coisa com as mulheres que estão suicidando-se. Ka não saberia dizer se o tom de voz do homem deixava transparecer orgulho ou vergonha. Três dias depois, parado na neve que cobria a avenida Halitpaşa, com lágrimas nos olhos, Ka veria novamente aquela aldeão delgado.
Durante a conversa sem rumo certo que se seguiu pelo resto da viagem de autocarro, Ka ficou sabendo que o homem acabara de levar a mãe para Erzurum porque o hospital de Kars não era muito bom, que revendia animais de granja nas aldeias próximas de Kars, que enfrentara muitas dificuldades mas não se tornara um rebelde, e que por motivos misteriosos que não revelou a Ka, lamentava não a própria sorte mas a do seu país e estava feliz em ver que um homem culto, um cavalheiro como Ka se dera ao trabalho de viajar de Istambul para se inteirar dos problemas da cidade. Havia uma tal nobreza na simplicidade da sua fala e no orgulho que exibia, que Ka sentiu respeito por ele. A própria presença dele inspirava calma. Nem uma vez nos doze anos de Alemanha, Ka sentira tanta paz interior; fazia muito tempo que tivera o prazer fugaz de experimentar empatia com alguém mais fraco que ele. Ele se lembrou de ter tentado ver o mundo pelos olhos de um homem capaz de sentir amor, simpatia e ternura. Ao fazer a mesma coisa naquele momento, já não sentia tanto medo da tempestade incessante. Sabia que não estavam destinados a cair num abismo. O autocarro iria atrasar-se, mas chegaria ao destino.
Quando, às dez horas da noite, três horas depois do previsto, o autocarro começou a avançar lentamente pelas ruas cobertas de neve de Kars, Ka não reconheceu a cidade de modo algum. Ele nem ao menos viu a estação ferroviária, aonde ele chegara vinte anos antes numa maria-fumaça, nem tampouco qualquer sinal do hotel para o qual o motorista o levara naquele dia (depois de percorrer toda a cidade): o Hotel República, um telefone em cada quarto. Era como se tudo tivesse sido apagado, estivesse perdido sob a neve. Ele teve um vislumbre dos velhos tempos nas charretes ali e acolá, esperando em garagens, mas a cidade parecia muito mais pobre e mais triste que aquela de que ele se lembrava. Pelas janelas geladas do autocarro, Ka viu os mesmos prédios de apartamentos de concreto que se tinham multiplicado por toda a Turquia nos últimos dez anos, os mesmos painéis de Plexiglas; viu também faixas com slogans da campanha eleitoral penduradas em todas as ruas». In Orhan Pamuk, Kar, 2002, Neve, Nobel da Literatura, tradução de Luciano Machado, Companhia das Letras, 2006, ISBN 853-590-922-2.

Cortesia Cletras/JDACT

Um Meeting na Parvónia. Anónimo. «É falso! Não consinto se pretenda menoscabar quem tanto se acrisola; mormente o bom ministro da fazenda, que, macio nos tributos, não esfola. Fora! Fora! Seu traste de encomenda! Gritou o povoréo, este é granjola!»

wikipedia e jdact

Meeting
[…]
«São justas nossas queixas, continua
o fogoso orador: heis de sofrer
um inepto governo, que pactua
co'a desonra, e que falta ao seu dever?
Que batalhas campais dá pela rua
acutilando o povo a seu prazer?
Abaixo ministério tão funesto!
Assinai, cidadãos, este protesto.

E logo se empoleira outro orador
compondo o rosto alvar; e ancho de si
exclama com prosápia: Salvador
ro rei, da pátria, afirmo agora aqui,
que só o meu partido benfeitor
vos trará felicidade... Potosi
é seu, e tem credito bastante
p'ra sair, desta crise, triunfante.

Sou regenerador, eu digo-o ufano;
o bem do povo é sempre o nosso alvo;
aborreço o governo que é tirano.
Dos tributos, pranchadas sereis salvo;
quem comigo votar não tema engano.
Mas nisto berra alguém: Oh seu papalvo,
já todos conhecemos vossas manhas:
O povo não engole tais patranhas.


É falso! Não consinto se pretenda
menoscabar quem tanto se acrisola;
mormente o bom ministro da fazenda,
que, macio nos tributos, não esfola.
Fora! Fora! Seu traste de encomenda!
Gritou o povoréo, este é granjola!
E o sucio, por temer as consequências,
escondeu-se nas mudas reticências.

Eu sou republicano cá de dentro!
Disse um tal agarrando um pedregulho.
Fora, Fora!, clamaram lá do centro.
Crescera a vozearia e o barulho:
ah! Safa, seu canalha, que o desventro!
Já se cale, ou a boca lhe atafulho!
Lhe brada, faca em punho um vil fadista:
acabemos com a raça realista.

Tal quando ronca o mar em tempestade,
revolvido por grande furacão,
e em montanhas de espuma corre, invade
ainda a mais alterosa embarcação;
ou quando no aduar em feridade
de assalto abrindo as garras o leão
percorre a empolgar seu inimigo,
assim o orador se viu em perigo.
[…]
Anónimo, 1881

JDACT

Um Meeting na Parvónia. Anónimo. «E logo sobre um banco alevantado um homem vocifera, gesticula, os ministros ataca, e de zangado, em verrina, que mais descamba em chula, invectiva o imposto, e o tratado que aprovara das cortes a matula»

wikipedia e jdact

Meeting
[…]
«Vão anchos, vão alegres na esp'rança
dum futuro feliz, que os seus tribunos
lhes prometem de ha muito. Essa aliança
da justiça e poder, fins oportunos
que á força popular lhes afiança
o livrá-los das unhas dos gatunos,
que roubando a nação se fazem nobres,
vampiros a chupar o sangue aos pobres.

É grande a multidão ali trazida:
alguns por curiosos se conduzem,
a outros a cobiça mais convida,
que muitos com promessas se reduzem;
e quantos com a mente prevenida
de utopias, que o animo seduzem,
com a grata ilusão de vir a ser
povo e rei de si mesmo no poder.

Suspenso vê-se á porta da taberna
um ramo de loureiro; mais em baixo
por símbolo pintaram-lhe uma perna
e um letreiro: Bom vinho do Cartaxo,
peixe frito, e as iscas á moderna;
e de copo na mão vê se um borracho
apontando p'ra a quinta, onde em devesas
lá sob os parreirais estão as mesas.


A gente á porta embica num montão,
inquieta formigando num bulício,
como em dia de roda ao Campeão
concorre por esperar o benefício
duma sorte feliz, dum alegrão.
Assim acode ali, e no comício
apanha, triste sorte, muita chuva,
muita parra, coitada, e pouca uva.

Escolhem de entre a turda incontinente
um quidam considerado dos mais doutos,
que ocupando o lugar de presidente
ao sentar-se salvou com três arrotos;
e com voz mal toada, intermitente,
vai falando, e cuspindo perdigotos;
assim empertigado estende a mão:
Eu abro, meus senhores, a sessão.

E logo sobre um banco alevantado
um homem vocifera, gesticula,
os ministros ataca, e de zangado,
em verrina, que mais descamba em chula,
invectiva o imposto, e o tratado
que aprovara das cortes a matula.
Embora, oh! Pátria minha, lutes, arques;
não consintas vender Lourenço Marques!
[…]
Anónimo, 1881

JDACT

A Voz dos Deuses. João Aguiar. «Intrigado com tanto interesse, o meu tio atentou melhor no ferido e reparou que este era muito jovem, quase um adolescente. Encolheu os ombros e acedeu, pensando que o rapaz não sobreviveria até à madrugada seguinte e portanto não valia a pena contrariar a irmã»

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O oráculo
«(…) O argumento venceu o meu tio, embora ele sacrificasse com mais vontade aos deuses dos bosques e das águas e àqueles que auxiliam os comerciantes ou voltam as suas atenções para as doenças que afligem os homens. Na verdade, ninguém é insensato ao ponto de enfrentar o temível poder dessa deusa misteriosa que já reinava durante gerações sem conta quando as outras divindades se manifestaram pela primeira vez. Por isso Camalo cedeu à insistência da irmã e, como medida de precaução, reforçou a escolta com alguns escravos seus, armados. A viagem até Baesuris decorreu sem incidentes; fizeram uma estada de três dias nesta cidade, durante a qual o meu tio realizou alguns negócios rendosos, o que melhorou a sua disposição, e a caravana rumou para norte ao longo do Anas, que naquele troço marca a fronteira com a Bética. Para maior comodidade acampavam sempre junto do rio. E foi a um dia de marcha de Myrtilis que, ao pôr-do-Sol, quando pararam no sítio escolhido para pernoitar, um dos homens da escolta, ao procurar lenha seca para a fogueira, deparou com um corpo estendido atrás de uma moita. Trouxeram-no para junto do fogo e o meu tio, depois de o examinar com cuidado, ficou persuadido de que nada havia a fazer porque o forasteiro tinha uma grande ferida nas costas, já infectada. Pegou no punhal para evitar maiores sofrimentos ao moribundo mas uma sombra interpôs-se entre ele e o corpo inerte; era Camala, de mãos erguidas em súplica. Não podemos salvá-lo, explicou ele à irmã, só podemos evitar que sofra mais ao acordar, se chegar a acordar. Deixa-me tratar dele, respondeu Camala, deixa-me tentar. Se não der resultado, então...
Intrigado com tanto interesse, o meu tio atentou melhor no ferido e reparou que este era muito jovem, quase um adolescente. Encolheu os ombros e acedeu, pensando que o rapaz não sobreviveria até à madrugada seguinte e portanto não valia a pena contrariar a irmã. Enganou-se. Camala velou toda a noite, preparando unguentos e infusões, conhecia as virtudes de muitas ervas e as fórmulas mágicas que reforçam os seus poderes. Sem atender às repetidas intimações para repousar e dormir, não abandonou o ferido um só instante e quando o Sol nasceu viram-na, com os olhos vermelhos e pisados da vigília mas exibindo um sorriso triunfante, verter sobre a fogueira uma libação ao deus da luz. O jovem não recobrara completamente os sentidos, porém abrira os olhos durante um breve momento, bebera um caldo de carne e adormecera, aparentemente tranquilo. Camala vencera as trevas. Nessa altura (tarde demais, como ele confessou), o meu tio suspeitou o que estava a acontecer. Quem pode compreender os sentimentos das mulheres? Meio morto, magro como um esqueleto, coberto de porcaria, o estrangeiro conquistara, assim mesmo, o amor da minha mãe. Nesse dia a caravana não prosseguiu o caminho e após uma discussão quase violenta foram mandados servos a Myrtilis para vender parte da mercadoria a comerciantes de confiança e comprar mais mantimentos. Entretanto, Camala mantinha-se ao pé do doente. O meu tio perdeu a paciência e declarou que se recusava a permanecer ali; a caravana regressou a Balsa.
Durante longos dias, a minha mãe lutou para arrancar o desconhecido ao poder dos espíritos da morte. Aplicou bálsamos e compressas sobre a ferida, chamou em seu auxílio todos os deuses e deusas que protegem a saúde dos mortais e, para não descurar nenhuma oportunidade, consultou os vizinhos que ela sabia terem sobrevivido a feridas semelhantes. O enfermo voltou finalmente ao mundo dos vivos. O repouso, o tratamento e a boa alimentação mudaram completamente o seu aspecto: era, de facto, atraente, bem proporcionado, com longos cabelos cor de cobre polido e olhos verdes. Quanto à minha mãe, devia ser muito bonita (ao crescer, eu ainda pude encontrar os vestígios dessa beleza); o sangue fenício deixara a sua marca nos traços finos e puros do rosto, no cabelo, de um negro carregado, e nos olhos também negros, enormes e com a forma harmoniosa das amêndoas. Era impossível que não se sentissem atraídos um pelo outro. Mesmo antes de saber quem ele era, Camala decidiu que não haveria outro homem na sua vida nem na sua cama. Esse amor transformou-se numa paixão absoluta e doentia quando o rapaz, ao recuperar a consciência, pôde falar de si próprio.
Segundo disse chamava-se Tongétamo e era filho do rei dos Brácaros, um povo que habita a Calécia, nome que dão à parte da Lusitânia situada ao norte do rio Durius. Brácara, a capital do reino, é uma cidade importante quando comparada com a maioria das povoações daquela região, embora não passe de uma grande aldeia fortificada ao lado das nossas cidades. Ainda hoje as tribos do Centro e Norte da Ibéria vivem em estado de efervescência latente; naquela época, a guerra aberta era uma situação normal e os períodos de paz uma excepção. Os pequenos reis e príncipes, mesmo os simples chefes tribais, faziam da guerra o seu ofício, por necessidade ou gosto, e quando o Inverno impedia as expedições ou os inimigos (isto é, todos os vizinhos que não tivessem antepassados comuns) se mostravam demasiado fortes, havia ainda o recurso à guerra civil. Eram raras as famílias reinantes da Lusitânia sem uma interminável história de duelos, assassinatos e ajustes de contas.
Tongétamo, terceiro filho de Tongétamo, rei dos Brácaros, fora um dos poucos sobreviventes da revolta que destronara seu pai e aniquilara toda a família, incluindo as mulheres e as crianças, mesmo as recém-nascidas. No último dia de luta, o jovem, à frente de um punhado de homens fiéis, rompera o cerco e lograra abandonar a Cidadela em chamas. O pequeno bando errara durante algum tempo pelos arredores de Brácara, escondendo-se nas colinas, mas o Inverno era duríssimo e os caminhos transitáveis estavam vigiados pelo inimigo. Os companheiros de Tongétamo começaram a sucumbir à fome e ao frio. Os que resistiram encaminharam-se para o Sul, atravessaram o Durius e procuraram, em vão, um local que lhes proporcionasse refúgio e repouso. Enfraquecidos, acossados pelos partidários do usurpador, eram somente quinze fantasmas esfomeados quando chegaram às margens do Tagus e antes da travessia deste rio mais cinco morreram com febres». In João Aguiar, A Voz dos Deuses, 1984, composição de Maria Samagaio, 2005, Lisboa, Sandra Ferreira, 2007, Grafiasa, Asa Editores, Rio Tinto, ISBN 972-41-1072-9.

Cortesia de ASAEditores/JDACT

A Voz dos Deuses. João Aguiar. «O meu tio tentou recusar, mas conhecendo o temperamento da minha mãe sei que isso não era fácil. Para fazer prevalecer a sua vontade podia rebelar-se abertamente, recorrer a um sorriso humilde ou entrar em crise de choro. Em qualquer dos casos não desistia…»

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O oráculo
«(…) Do meu pai só conservo a fugidia imagem de um rapaz que me sentava sobre os joelhos e que era tão belo, de uma beleza tão resplandecente, que eu não sabia (ainda hoje não tenho a certeza) se ele era de facto o meu pai ou uma daquelas divindades luminosas que aparecem às crianças. Pensei nisso muitas vezes, mas creio que se fosse uma aparição o seu olhar não seria tão triste e ausente. A recordação tornou-se mais ténue com o rolar dos anos, porém julgo que nunca esquecerei, ao menos, aqueles olhos muito claros, de um tom verde-mar, que me fitavam quase sem atentar em mim. Quando compreendi que já não tinha pai, procurei saber o que lhe acontecera e quem ele fora. Da minha mãe não obtive informação alguma, quase só falava dele para rezar ao seu espírito (acusando-o porém de a ter abandonado) ou para carpir a sua morte, o que acontecia sobretudo quando alguém a contrariava. Foi Camalo, o meu tio, que um dia me contou (com uma amargura que não procurou disfarçar) a história desse casamento de que eu sou o único fruto. Já nessa altura eu sabia, por intuição infantil, que a escolha da minha mãe nunca lhe agradara. Camalo era um homem austero e reservado. Após a morte do meu avô assumira a responsabilidade de proteger a irmã, quinze anos mais nova. Enviuvara cedo, sem filhos, e decidira não voltar a casar até a jovem Camala encontrar um marido capaz de a defender em caso de perigo, pois vivia-se numa época agitada e constantemente chegavam ao Cineticum notícias de combates travados entre os governadores da Hispânia Ulterior (como os ocupantes lhe chamavam) e os povos das regiões não subjugadas. Na Bética e na Betúria eram frequentes as incursões dos Lusitanos e os mercadores provenientes de Gadir contavam histórias inquietantes de sangrentas revoltas contra Roma. Por tudo isto, o desejo de Camalo era casar a irmã com algum sólido e influente comerciante que soubesse mantê-la ao abrigo do infortúnio. Mas os homens são bonecos nas mãos dos deuses.
A história foi-me contada quando eu tinha doze anos. Havia já algum tempo que a minha mãe, cada vez que eu fazia uma travessura própria da idade, me dizia num tom grave e pomposo: Tongio, não podes comportar-te como se fosses um garoto qualquer! Porquê?, perguntava eu só para ganhar tempo. E a resposta, já conhecida, não se fazia esperar: Lembra-te de quem és. Lembra-te de que tens sangue real. Dizia isto e recusava-se a dar qualquer explicação. Não me foi difícil perceber que tais palavras tinham o condão de exasperar o meu tio. E percebi mais: ele e a minha mãe estavam empenhados numa luta surda em que eu era o despojo de guerra. Um dia Camalo não resistiu e, quando a odiada frase voltou a ser proferida, ergueu-se e fez-me sinal para o seguir ao mesmo tempo que, com um olhar cuja dureza me chocou, fazia calar os protestos da minha mãe. Durante alguns instantes insuportáveis, os dois enfrentaram-se quase com raiva; depois ela cedeu e o meu tio saiu para o jardim, com o corpo ainda inteiriçado pelo esforço que fizera para se dominar. Eu fui no seu encalço.
Era um dia de Primavera, um dia doirado de sol e pairava no ar um cheiro a flores, a mel e ao pão quente que os escravos estavam a tirar do forno. Camalo deteve-se num recanto do jardim e eu esperei que ele escolhesse uma sombra e me mandasse sentar. O seu ar grave, mais grave que o habitual, provocou em mim uma sensação desconfortável. Cedo ou tarde teríamos esta conversa, disse ele, quase bruscamente, e penso ter chegado a altura. Começou então uma narrativa que eu ouvi com avidez, bebendo-lhe as palavras. Escolheu uma linguagem própria para a minha idade e omitiu certos pormenores, mas foi suficientemente claro para que mais tarde eu pudesse preencher as lacunas do relato com o meu conhecimento de homem adulto. Quando a minha mãe completou quinze anos, tomou a inesperada decisão de acompanhar Camalo numa das suas viagens de negócios. O irmão deixara-a sempre à guarda de servos de confiança, mas naquele ano ela teimou em fazer a viagem a Baesuris e de lá, seguindo o curso do Anas para norte, até à cidade de Myrtilis.
O meu tio tentou recusar, mas conhecendo o temperamento da minha mãe sei que isso não era fácil. Para fazer prevalecer a sua vontade podia rebelar-se abertamente, recorrer a um sorriso humilde ou entrar em crise de choro. Em qualquer dos casos não desistia, nunca dava quartel e empregava todas as armas ao seu alcance. Assim, durante a discussão, argumentou que não haveria perigo na viagem, porque, como Camalo muito bem sabia, reinava uma certa paz na Bética e nas terras de entre Anas e Tagus, habitadas por Célticos e Lusitanos. Ainda que houvesse bandos de salteadores, acrescentou, os homens armados que protegiam a mercadoria defenderiam também aqueles que a acompanhavam. As razões mais poderosas reservou-as para o fim: uma recusa de Camalo iria ofender a Grande Deusa. De facto, era por devoção e não por espírito de aventura que a minha mãe pretendia seguir na caravana. Tinham chegado a Balsa notícias de prodígios ocorridos algures a norte de Myrtilis. Ao que se dizia, a divindade manifestara-se ocultando a Lua, esse astro que é a sua imagem visível no céu; feitos os sacrifícios e lidos os presságios, os sacerdotes haviam anunciado que a deusa exigia a construção de um santuário. O local exacto fora indicado, os trabalhos iam já a meio e de todos os lados acorriam peregrinos. Era este santuário que a minha mãe queria absolutamente visitar». In João Aguiar, A Voz dos Deuses, 1984, composição de Maria Samagaio, 2005, Lisboa, Sandra Ferreira, 2007, Grafiasa, Asa Editores, Rio Tinto, ISBN 972-41-1072-9.

Cortesia de ASAEditores/JDACT

domingo, 29 de março de 2015

Inês de Portugal. Pequenos Prazeres. João Aguiar. «”Lavar o seu sangue?” Não, Afonso, não dizes bem. Tivesse eu recolhido o seu sangue, haveria de o trazer comigo, encerrado em relicário santo. Até isso me foi negado. Mas se o não posso ter…»

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De profundis clamo ad te, domine
«(…) Morrem-lhe na garganta as palavras mais difíceis de dizer. Porque ... ? Acaba. E Afonso Madeira, num sopro: Sofrei que vo-lo diga e não me queirais mal. É que, bem o sabeis, sendo infante, haveis jurado... Interrompe-o um aaah prolongado, uma espécie de rugido. Mas agora tem de terminar. Senhor, eles só temem pelo vosso nome, pela vossa boa fama, pelo que as gentes possam pensar ou dizer de vossa mercê. O que as gentes pensam ou dizem. Sim, nisso eles pensam. E eu, o agravo que sofri, o feito que esses dois fizeram? O moço aproxima-se de Pedro, de modo a que este não perca uma única palavra sua. Entendei que eles pouco sabem o que vos ferve na alma. Eu sei, sei que o vosso juramento foi somente forçado pela paz do reino. Nem outra cousa podia ser, pelo vosso grande amor a dona Inês, um amor que ainda vive como se ela viva fosse. Pedro, que se virou para ele, abre-se num sorriso que é emoção e é ternura. Como tu me conheces, Afonso. Só tu. A isto responde o escudeiro, dando ao rosto aquela expressão de fragilidade e de inocência que o torna ainda mais jovem, que o faz tão querido das mulheres e que, um dia, seduziu o Rei a ponto de o arrancar por momentos ao perpétuo luto por Inês: É que vos tenho mais amor que os outros. E haveis-me falado tanto de dona Inês que eu bem entendo que queirais lavar o seu sangue. Sim, ele diz isto. Lá fora, pensa o jovem, Álvaro Pais há-de esperar de olhos cravados na porta, que o ânimo do rei se altere por sua intercessão. Ele entendeu, porém, que o mesmo será esperar ver um rio Correr para a nascente. Afonso Madeira já não cuida mais dos desejos do chanceler. Fez o que pôde, disse o que estava ao seu alcance. Agora, tem de seguir o rei no seu sonho, para não o perder. Há nisto o seu interesse e também uma afeição sincera. Acima de tudo, intuiu que no espírito e na alma de Pedro nada nem ninguém poderá dominar a imagem de dona Inês. Acima dela estará hoje o reino, talvez, mas somente o reino. Nenhum homem e nenhuma mulher. A voz de Pedro, ao responder-lhe, interrompe-lhe o curso do pensamento.
Lavar o seu sangue? Não, Afonso, não dizes bem. Tivesse eu recolhido o seu sangue, haveria de o trazer comigo, encerrado em relicário santo. Até isso me foi negado. Mas se o não posso ter, hei-de ao menos vingá-lo. É Pedro que se aproxima agora, lentamente, enquanto fala. Que sabe o mundo de juramentos, Afonso? O juramento que eu lhe fiz, a ela e não ao meu pai e à minha mãe, o juramento que lhe fiz, só esse é verdadeiro e só esse conta e só esse me prende. Afonso Madeira tenta desesperadamente afastar a imagem da ausente, que enche e domina a sala e lhe rouba a atenção, o olhar de Pedro. A imagem da morta é, bem o sabe, capaz de varrer todos os vivos para a sombra do esquecimento. Afonso, murmura o rei, nunca houve nem haverá no mundo amor como este. E o jovem, num último protesto: Por vezes, olho-vos e sinto receio. Cuido que ela está aqui, entre nós, cuido que ainda a vedes. Justamente, Pedro vê-a. Em sonhos e em sombras. O mundo em que vivo verdadeiramente, é esta a ideia que lhe acode, o mundo em que vivo é só feito de sonho e de sombra porque a luz, essa, roubaram-ma quando a mataram. A minha luz vinha dos seus olhos. Sim, Pedro vê-a. Sempre. Por vezes, até nos rostos graves dos seus conselheiros, mais vezes porém no rosto claro deste escudeiro, a ponto de não saber já quem está na sua frente e foi essa confusão, foi essa ilusão que um dia o levou a tomá-lo nos braços. Mas hoje não quer que isso aconteça. Sacode a cabeça para afastar os dedos da sombra e ordena roucamente: Vai-te agora, Afonso. Deixa-me só. O alaúde volta ao seu leito, na almadraquexa que recobre uma grande arca. Afonso Madeira aí o deixa a repousar, antes de sair». In João Aguiar, Inês de Portugal, pequenos Prazeres, Edições ASA, 1997, ISBN 972-41-1822-3.

Cortesia de ASA/JDACT

A personagem do rei Pedro I. Narrativa portuguesa do dealbar do século XXI. Pedro J. Rodrigues. «… um Monarca itinerante, que calcorreou as estradas para levar a presença régia a todos os cantos do País, sacrificando-se e agindo sempre em prol grande da sua terra»

Cortesia de wikipedia

A figura do rei através dos documentos oficiais do seu reinado
«(…) Poderemos sempre questionar se as decisões originadas nas Cortes (tal como, mais tarde, as exaradas na Chancelaria) são o reflexo das vontades e convicções do rei Pedro I ou se, pelo contrário, resultam das opiniões maioritárias do seu Conselho, o qual ajudava na elaboração dos documentos escritos que constituíam as respostas às queixas (ou agravamentos) apresentadas pelos grupos sociais ou pelos diversos concelhos. Este Conselho Real continua a acompanhar o rei ao longo do seu reinado, desempenhando funções consultivas, mas o seu verdadeiro peso nas decisões régias permanecerá sempre uma incógnita: se alguns salientam a sua importância, como Joel Serrão e Oliveira Marques, que associam a manutenção da paz no reino ao facto de o rei se ter rodeado de bons conselheiros, outros, pelo contrário, consideram que o conselho assumia uma posição subalterna, confinado, na prática, a intervir apenas quando o rei o chamava a pronunciar-se ou, caso este se ausentasse, a decidir nos casos mais simples. É possível que o rei se tivesse escudado inicialmente nos conselhos de homens experientes que o acompanhavam desde os tempos dos confrontos com Afonso IV, passando a agir de forma individual, à medida que ia adquirindo mais experiência e confiança nas suas próprias capacidades; de tal modo que, justificando decisões suas quanto à centralização dos mecanismos de desembargo, o rei mostra não abdicar do seu direito de controlar bem de perto a aplicação da justiça que era feita em seu nome: per esta guisa vera el rrey todo o que se livra na sua corte. Assim, a importância do Conselho Real ter-se-ia esvaziado gradualmente, até ser apenas um meio de conseguir que a máquina judicial continuasse a funcionar quando o rei se ausentasse para as suas diversões venatórias, constituindo excepção os casos mais complexos, que esperariam o seu regresso.
Esta aparente falta de responsabilidade de um rei que abandona o trono e os deveres a ele associados para se divertir caçando, por vezes durante longos espaços temporais, pode levar-nos a reflexões um pouco mais complexas. É verdade que Pedro I se deu conta da necessidade de colmatar a sua ausência, delegando poderes nos seus oficiais de justiça, embora se reservasse o direito de fazer esperar pela sua real decisão os casos mais complexos, como já vimos; mas também não podemos deixar de atribuir algum significado ao facto de, durante os dez anos do seu reinado, raramente se encontrar num mesmo local mais de um mês. O estudo dos seus itinerários, baseado nos documentos da chancelaria real, confirma esta característica; mas quanto às causas, mais uma vez, não existe consenso. Mesmo entre os historiadores mais recentes, há divergências essenciais quanto às motivações de Pedro I: Oliveira Marques, por exemplo, identifica o rei com um indivíduo incapaz de se demorar em qualquer cidade ou região, com necessidade constante de mudança, em suma, um homem instável no mais elevado grau; por outro lado, Veríssimo Serrão apresenta-o como um Monarca itinerante, que calcorreou as estradas para levar a presença régia a todos os cantos do País, sacrificando-se e agindo sempre em prol grande da sua terra. É esta última posição a que parece reunir a preferência dos estudiosos actuais. Luís Krus, em comentário breve à edição da Chancelaria de D. Pedro, acredita que o facto de o monarca viajar por todo o reino, ouvindo os povos, cimenta a própria unidade do país através da sua simples presença e acção. Dora Luís, por outro lado, prefere salientar a sensatez do rei, já que considera que as suas viagens são uma excelente estratégia de relações-públicas e de propaganda, porque exponenciam a projecção da sua imagem. O hábito de viajar pelo país viria já, aliás, da juventude do infante, atitude a que se poderia atribuir uma intenção concreta do príncipe herdeiro, que circulava constantemente de terra em terra fazendo-se conhecido e estimado.
Parece-nos difícil crer que Pedro I desde tão cedo previsse a necessidade de captar as simpatias do povo para fortalecer o seu próprio poder daí a vários anos, tanto mais que não poderia antever as tensões imediatamente anteriores à sua investidura. Mas se o novo rei fez questão de continuar a obra legislativa de seu pai, sabendo aproveitar a herança de Afonso IV, respeitá-la, mantê-la e segui-la, a verdade é que não demorou muito tempo a controlar os poderes dos nobres e a tomar medidas concretas que afrontaram o clero de forma significativa, tudo isto com um apoio já incondicional do povo, cuja confiança o rei cultivaria de forma consciente. Esta estratégia de consolidação do poder parece ter assentado também, segundo Valentino Viegas, na substituição dos alcaides por pessoas da confiança do rei e na distribuição de cargos importantes a vassalos escolhidos, certamente não de modo aleatório; desta forma e através da concessão de alguns benefícios, o rei dominava a engrenagem do poder central. Isto apesar de não ser, de todo, consensual a ideia de que Pedro I tenha sido extremamente liberal: de acordo com o referido autor, o rei Pedro I foi bastante comedido em acrescentamentos, incomparavelmente mais do que os seus sucessores, a não ser que os seus antecessores fossem ainda mais parcimoniosos, o que parece confirmar-se pelo menos em relação a Afonso IV». In Pedro Jorge Rodrigues, A personagem D. Pedro, Na narrativa portuguesa do dealbar do século XXI, Tese de Mestrado em Estudos Portugueses Interdisciplinares, Universidade Aberta, Coimbra, 2006,

Cortesia de UAberta, Coimbra/JDACT