sábado, 14 de fevereiro de 2015

To Kill a Mockingbird. Não Matem a Cotovia. Harper Lee. «Pelas nove da manhã já os colarinhos bem engomados dos homens perdiam a goma. As senhoras tomavam banho antes do meio-dia, depois da sesta das três e ao anoitecer eram como biscoitos de manteiga…»

Cortesia de wikipedia

«(…) Ao longo dos seus primeiros cinco anos em Maycomb, Atticus exerceu acima de tudo Economia; depois, durante os anos subsequentes,  decidiu investir os seus rendimentos na educação do irmão. John Finch era dez anos mais novo que o meu pai e decidiu optar por Medicina numa altura em que o algodão não estava a render; porém, só depois de dar uma mãozinha ao tio Jack, é que Atticus começou a tirar um lucro razoável da advocacia. Nado e criado em Maycomb, gostava de Maycomb, conhecia a sua gente, eles conheciam-no e, devido à prole de Simon Finch, Atticus era parente de sangue ou por casamento de quase todas as famílias da cidade. Maycomb era uma cidade velha, mas quando a conheci era uma cidade velha e cansada. Com o tempo chuvoso as ruas transformavam-se em lodo avermelhado; a erva crescia nos passeios e o velho tribunal vergava-se sobre a praça. Seja como for, naquela época o tempo era bem mais quente: qualquer cão preto penava num dia de Verão; perante o calor sufocante, as mulas escanzeladas aparelhadas  às carroças modelo Hoover sacudiam as moscas à sombra dos carvalhos existentes na praça. Pelas nove da manhã já os colarinhos bem engomados dos homens perdiam a goma. As senhoras tomavam banho antes do meio-dia, depois da sesta das três e ao anoitecer eram como biscoitos de manteiga cobertos com gotículas de suor e pó de talco perfumado. Naqueles tempos as pessoas deslocavam-se lentamente. Deambulavam pela praça, ora entrando, ora saindo das lojas à sua volta, ocupando o tempo com quase tudo. O dia tinha vinte e quatro horas, mas parecia ser bem mais longo. Não havia pressa, porque não havia  nenhum sítio para onde ir, nada para comprar e nenhum dinheiro com que comprar, nada para ver além dos limites de Maycomb County. Mas, para alguns, eram tempos de vago optimismo: isto porque alguém dissera recentemente que Maycomb County nada tinha a temer, excepto o próprio medo.
Vivíamos na principal rua residencial da cidade: o Atticus, o Jem e eu, mais a Calpurnia, a nossa cozinheira. Eu e o Jem achávamos o nosso pai razoável: ele brincava connosco, lia para nós e tratava-nos com um distanciamento cortês. Pelo contrário, a Calpurnia já era uma outra história. Era toda ângulos e ossos; era míope; estrábica; a sua mão era grande como uma trave e duas vezes mais dura. Estava constantemente a mandar-me  sair da cozinha, a perguntar-me por que é que não me comportava tão bem como o Jem, quando ela sabia perfeitamente que ele era o mais velho e, além disso, tinha sempre a mania de me chamar para casa nas piores alturas. As nossas guerras eram épicas e unilaterais. Ela vencia sempre, muito porque o Atticus tomava sempre o seu partido. Estava connosco desde que o Jem tinha nascido  e eu sentia a despótica presença dela desde que me lembrava de mim. Eu tinha dois anos quando a nossa mãe morreu, por isso nunca senti a sua ausência. Era uma Graham de Montgomery. O Atticus conheceu-a quando foi eleito pela primeira vez para a comissão legislativa do estado. Ele era já um homem de meia-idade, enquanto ela era quinze anos mais nova. Jem era o fruto do seu primeiro ano de casamento; quatro anos mais tarde nasci eu e dois anos depois a nossa mãe morreu de um súbito ataque cardíaco. Disseram que era hereditário. Não senti a falta dela, mas penso que o Jem sentiu, e bastante. Ele lembrava-se perfeitamente dela e às vezes, a meio de um jogo, começava aos suspiros e, em seguida, saía e ia jogar sozinho para trás da garagem. Mal ele começava assim, eu já sabia que não o devia importunar.
Quando eu tinha quase seis anos e o Jem para aí uns dez, as fronteiras do nosso Verão (mas sempre ao alcance do chamamento da Calpurnia) limitavam-se à casa de Henry Dubose, duas portas a norte, e à Casa Radley, três portas a sul. Nunca nos tínhamos atrevido a ultrapassá-las. A Casa Radley era habitada por uma entidade desconhecida cuja descrição era suficiente para nos fazer andar bem comportados dias a fio; quanto a Dubose, ela era um verdadeiro inferno. Foi nesse Verão que conhecemos o Dill. Certa (manhã, bem cedinho, quando estávamos a começar as nossas brincadeiras no pátio das traseiras, eu e o Jem ouvimos alguma coisa na horta de Rachel Haverford. Dirigimo-nos à cerca de arame para ver se do outro lado já havia algum cachorrito (a terrier rateira de Rachel estava prenhe), mas em vez disso encontrámos uma pessoa sentada a olhar para nós. Sentado, ele não seria muito maior do que as couves. Ficámos a olhar para ele até que ele disse: Olá! Olá pá ti tam’em - disse o Jem educadamente. Chamo-me Charles Harris, disse ele. E sei ler. Sim, e depois?, retorquiu o Jem. Pensei que gostassem de saber que sei ler. Se quiserem qu’eu leia qualquer coisa, é só dizer...» In Harper Lee, To Kill a Mockingbird, Por Favor, não Matem a Cotovia, edição/reimpressão 1986, Publicações Europa-América, livros de bolso, ISBN 978-972-101-550-0.

Cortesia de PEAmérica/Wikipédia/JDACT