terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

To Kill a Mockingbird. Não Matem a Cotovia. Harper Lee. «Deste modo, Simon, ignorando por completo a avaliação formal do seu professor acerca da posse de bens humanos, acabou por comprar três escravos e, com a sua ajuda, construiu uma propriedade nas margens do rio Alabama, uns 70 km acima de Saint Stephens»

Cortesia e wikipedia

«Quando estava prestes a completar treze anos, o meu irmão Jem fracturou gravemente o braço na zona do cotovelo. Quando recuperou, os seus receios de nunca mais poder voltar a jogar futebol foram postos de parte tão depressa quanto se esqueceu da sua lesão. Porém, o seu braço esquerdo ficara um tanto ou quanto mais curto do que o direito; quando estava parado, de pé, ou a caminhar, a palma da sua mão ficava mesmo perpendicular ao corpo, com o polegar paralelo à coxa. Mas isso não o incomodava, desde que conseguisse fazer passes e rematar. Passados os anos suficientes para que os pudéssemos reviver com algum distanciamento, falávamos de quando em vez dos acontecimentos  que tinham dado origem ao acidente. Eu continuo a achar que foram os Ewells que começaram tudo, mas o Jem, que era quatro  anos mais velho do que eu, disse que tudo começou muito tempo antes. De facto, disse que tudo começara naquele Verão em que o Dill apareceu por estas bandas, da primeira vez que ele sugeriu que tentássemos obrigar o Boo Radley a sair de casa. Aí eu disse-lhe que se quiséssemos ter uma visão mais alargada da questão, então teríamos de recuar até à época do presidente Andrew Jackson. Se o general Jackson não tivesse decidido expulsar a tribo Creek dos seus territórios rio acima, o Simon Finch jamais teria vindo parar ao Alabama. E então, onde é que nós estaríamos  neste momento? Como já éramos demasiado crescidos para recorrermos aos punhos para resolver uma discussão, decidimos consultar o Atticus. E o nosso pai disse que ambos tínhamos razão. Como sulistas, era motivo de vergonha para alguns membros da família não termos conhecimento de qualquer familiar nosso que tivesse estado envolvido numa das facções da batalha de Hastings. Sendo assim, apenas nos restava Simon Finch, um boticário negociante  de peles da Cornualha, cuja piedade só era excedida pela sua usura. Em Inglaterra, Simon sentira-se deveras irritado ante a perseguição  movida a quem se proclamava Metodista pelos seus irmãos mais liberais, e como Simon se considerava um Metodista, tratou de atravessar o Atlântico rumo a Filadélfia, daí para a Jamaica, daí para Mobile, até chegar a Saint Stephens. Consciente da censura de John Wesley sobre o uso excessivo da verborreia na compra e na venda, Simon fez fortuna com a prática da medicina, mas sentia-se algo infeliz nesta sua busca ante o medo de cair na tentação de exercer o seu ofício, não pela Glória de Deus, mas pela vacuidade do ouro e pelo luxo e ostentação do vestuário. Deste modo, Simon, ignorando por completo a avaliação formal do seu professor acerca da posse de bens humanos, acabou por comprar três escravos e, com a sua ajuda, construiu uma propriedade nas margens do rio Alabama, uns 70 km acima de Saint Stephens. Só voltou mais uma vez a Saint Stephens, desta feita para arranjar mulher e com ela estabelecer  uma linhagem em que predominavam apenas raparigas. Simon viveu até a uma idade considerável e morreu rico.
Era costume os homens da família permanecerem na propriedade  de Simon, chamada Plantação Finch, ganhando a vida com o algodão. O sítio era auto-suficiente: modesto em comparação com aqueles que o rodeavam, embora a plantação produzisse tudo o que é essencial à vida, excepto gelo, farinha de trigo e artigos de vestuário,  que eram fornecidos pelos barcos provenientes de Mobile. Simon teria certamente acompanhado com fúria impotente os distúrbios entre o Norte e o Sul, dado que este conflito despojou os seus descendentes de tudo o que tinham, excepto a sua terra. No entanto, a tradição de viver da terra manteve-se inabalável até ao século XX, altura em que o meu pai, Atticus Finch, foi para Montgomery estudar Direito e o seu irmão mais novo para Boston, estudar Medicina. A irmã deles, Alexandra, foi a única Finch que permaneceu na Plantação: casou com um homem taciturno, que passava a maior parte do seu tempo deitado junto ao rio numa cama de rede, imaginando se as suas redes de pesca estariam cheias ou não. Quando o meu pai concluiu a sua licenciatura, regressou a Maycomb e começou a exercer advocacia. Maycomb, que se situava aproximadamente 30 km a leste da Plantação Finch, era a sede de condado de Maycomb County. O gabinete de Atticus no tribunal continha pouco mais que um cabide para chapéus, um escarrador, um tabuleiro de damas e um Código Civil do Alabama novinho em folha. Os seus dois primeiros clientes foram as duas últimas pessoas a serem enforcadas na cadeia de Maycomb County. Atticus tinha procurado convencê-los a aceitar a generosidade estadual, permitindo-lhes  declararem-se culpados de homicídio em segundo grau e escapar com vida, só que eles eram Haverfords, apelido este que, em Maycomb County, era sinónimo de estupidez. Os Haverfords haviam despachado o mais importante ferreiro de Maycomb num mal-entendido alegadamente proveniente da má ferragem de uma égua. Só que foram imprudentes ao ponto de cometerem o crime na presença de três testemunhas e, mesmo assim, insistiam que o facto de o filho da mãe se ter atirado a eles era por si só um bom argumento de defesa para qualquer um. Teimavam em alegar que estavam inocentes de homicídio em primeiro grau, por isso a Atticus nada mais restava fazer pelos seus clientes, do que estar presente na sua última e derradeira viagem, uma ocasião que terá, porventura, despertado o seu profundo desgosto pela prática do direito criminal». In Harper Lee, To Kill a Mockingbird, Por Favor, não Matem a Cotovia, Wikipédia, edição/reimpressão 1986, Publicações Europa-América, livros de bolso, ISBN 978-972-101-550-0.

Cortesia de PEAmérica/Wikipédia/JDACT