domingo, 15 de fevereiro de 2015

Romance. Um Amor Feliz. David Mourão-Ferreira. «Uma pessoa casada, repetiu você, só com outra pessoa casada. E que de preferência uma delas seja mais velha. De preferência o homem. De preferência mesmo um tanto mais velho, pouco disposto a correr novos riscos…»

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«(…) Nem sei porque me apetece contar-lhe a si, precisamente a si, esta vulgaríssima história de um amor feliz. Mentira! Claro que sei. Foi justamente você quem no começo deste ano me revelou um segredo de que eu nunca tinha chegado a suspeitar. E me confiou mesmo a fórmula de certas circunstâncias indispensáveis à existência de um amor feliz: Uma pessoa casada... só com outra pessoa casada. Apesar de você ainda ser mais nova que a Y, logo de imediato se firmou, entre nós dois, desde a primeira vez que nos encontrámos, uma espécie de cumplicidade que não queremos ou não podemos levar longe de mais. Mas confesse que é divertido, para nós ambos, este reticente pacto de auxílio mútuo. Com o seu chemisier impecavelmente branco, de golinha levantada sobre a nuca, com as suas apertadas calças de veludo vermelho-escuro, com o seu trancelim de ouro-velho enrolado nos dedos da mão esquerda, com os seus cabelos quase pretos sensatamente apartados a meio e só de leve tufados sobre os cantos da testa, com o seu modo espantadiço de abrir demasiado os olhos por nunca mais se habituar às lentes de contacto, você, vista de longe, devia ser a viva imagem, nessa noite, de uma casta menina bem-comportada a quem deram como prémio assistir a uma reunião de gente crescida. E não deixava de ser perturbante o contraste de tudo isto, não só com a conversa que estávamos a ter, mas, principalmente, com a lucidez, a maturidade, a capacidade de impudor que também os seus versos me tinham revelado. Daí que eu estivesse a ouvi-la com a mais intensa das atenções. A dez passos de nós, o seu verde pediatra e a minha madura pediatra, no meio de quatro ou cinco pediatras estrangeiros convenientemente sortidos, julgariam decerto que nos entretínhamos a jogar o sisudo. Como poderei resistir, daqui a pouco, à tentação de reproduzir esse nosso diálogo? Sempre me empolgou acrescentar à mais que certa efemeridade de uma conversa a muito provável efemeridade do seu registo.

Uma pessoa casada, repetiu você, só com outra pessoa casada. E que de preferência uma delas seja mais velha. De preferência o homem. De preferência mesmo um tanto mais velho, pouco disposto a correr novos riscos, particularmente capaz de não cair na tentação de embarcar em mais outro outboard conjugal. Pareceu-me perfeito como raciocínio. Admirei-me de nunca ter pensado no assunto: um verdadeiro ovo de Colombo. Era isso: pelo que me recordava, problemas sérios só os tinha tido, até então, por causa de solteiras, ou viúvas, ou divorciadas. A começar (a acabar?) no caso já longínquo da longuíssima , que muito brasileiramente acumulava mesmo os dois últimos estados civis, que não menos brasileiramente se fazia passar na Europa como ainda pertencente ao primeiro. E a imagem remota da remota (viva ou morta em que ponto do planeta?) logo em tropel me trazia à memória, como numa sequência de slides a passarem demasiado à pressa, dias e dias através de Roma, pequenas praias nos arredores de Amalfi, e Pompeia no regresso, e Roma de novo, e uma tumultuosa discussão no sossego da Via Giulia, e o meu grande vexame. Junto a uma fonte da Piazza Navona...

Era o jantar de encerramento de mais umas Jornadas Internacionais de Pediatria, tão inevitavelmente inolvidáveis que já ninguém hoje se lembra delas. Depois da memorável sessão de fados para estrangeiro ouvir e esquecer, para estrangeiro não entender, para estrangeiro garantir que sim, que se extasiou, tínhamo-nos arredado um pouco, no último andar daquele hotel pseudocosmopolita, para o vão dessa janela de onde mal se via uma Lisboa sujamente espectral, toscamente iluminada, a tiritar de desemprego, de expedientes e de salários em atraso, sob um esfarrapado capote de nevoeiro. Só nos faltou acrescentar que o seu marido e a minha mulher, à força de tanto tratarem de crianças, serão talvez irremediavelmente, sob certos aspectos, muito mais infantis do que nós somos. Claro que para eles a melhor prova da nossa incurável infantilidade reside no facto de você alinhar uns esquadrões de palavras que eles duvidam que sejam versos (ou que ainda menos aceitam que sejam poesia) e de eu persistir em fabricar umas peças e uns objectos que a maior parte das pessoas, incluindo eles próprios, se recusa a acreditar que sejam esculturas. (Até eu. Até eu às vezes tenho as minhas dúvidas.)
Caso curioso: não foi ainda nessa ocasião, porquê?, que lhe disse o que penso, para quê?, do seu livro de poemas. Voltei só a afirmar-lhe que não gosto do título. Mas nem você imagina a razão por que tão repetidamente (com os pretextos de lhe ir buscar uma bebida, um cinzeiro, uma caixa de fósforos) fiquei de longe a contemplá-la, sobretudo quando você estava de costas para mim. Verdade seja, também isso tinha a ver com o seu livro. Adiante. De qualquer modo, entre nós, não são os seus versos, não são os meus objectos o que propriamente está em causa: nem eu entenderei perfeitamente aquilo que você escreve, nem você (apesar de talvez me considerar uma espécie de vaca sagrada) estará interessada em compreender aquilo que tenho feito. Ainda menos, com toda a certeza, aquilo que desejaria ter feito, e de que pouco a pouco tenho vindo a desistir». In David Mourão-Ferreira, Um Amor Feliz, Editorial Presença, Lisboa, 1986.

Cortesia EPresença/JDACT