quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Os Venturosos. Leituras. Alexandre Honrado. «Os mais estranhos serão esses Capuchos castelhanos que se estabeleceram na antiga Ermida de Nossa Senhora da Piedade. Como não traziam pecados visíveis, vai de andar à sarrafada entre eles...»

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«(…) O espiritual perdera todas as características primitivas. Apesar de tudo, continuava a respeitar-se as isenções e privilégios, especialmente o do foro. Havia em todas as ordens, além dos cavaleiros, clérigos-freires para o culto divino, são estes que encontramos aqui reunidos especialmente. Deviam estes viver conventualmente, sob a jurisdição do prior-mor, porém nem todos têm grande queda para recatos. Andavam, por assim dizer, quase sempre na giraldinha, em muito boa vida airada. El-Rei nomeara há pouco priores-mores para o Mosteiro de Santa Cruz. A Ordem de S. Francisco andava partida a meio, com conventuais para um lado e claustrais para o outro, que Leão X reconhecera, tornando definitiva a separação entre conventuais observantes e reunindo as várias congregações formadas por estes últimos, sob o título de Frades Menores da regular observância. Gente muito conflituosa que não consegue viver em boa harmonia. Os mais estranhos serão esses Capuchos castelhanos que se estabeleceram na antiga Ermida de Nossa Senhora da Piedade. Como não traziam pecados visíveis, vai de andar à sarrafada entre eles...
Os mosteiros beneditinos, já muito ricos e prósperos, andam cada vez mais decadentes, e S. Bento não parece ser muito popular. Os abades comendatórios é que mandam por lá, mas ordinariamente tratam mais de si que do espiritual e temporal em seus mosteiros. Os Cistercienses, ou de S. Bernardo, tratam-se com mais economia, gozando mercês e privilégios, têm rendas e figuras poderosas, são bem abastados por sinal. Os de S. Domingos têm também o fel ao pé da boca. São frades pregadores que pregam bem mas não entre si... Ali, na Nossa Senhora do Vencimento do monte do Carmo, vivem os Carmelitas, que trajam a uso o hábito de donato como foi imposto ao Condestável. São mais discretos.
Gente de saber e de poder, esses sim, são os de Jerónimo, que parecem vir desses discípulos de S. Tomás de Sena, o italiano. É a ordem de frei Tomás, .a quem o papa Gregório XI concedeu a regra de Santo Agostinho, modificada com algumas prescrições de S. Jerónimo. Muitos reis devem à Ordem muitos favores, e El--Rei não é excepção, andando a doar-lhes um mosteiro que fica pegado ao grande templo que mandou erguer no lugar da antiga Igreja de Santa Maria e onde El-Rei quer permanecer depois de finado (quer lá ficar sozinho, sepulto na capela-mor do mosteiro, fazendo da obra um lugar erguido à sua memória e aos grandes feitos que em seu nome o reino foi gerando). El-Rei, por grande capricho, quer mais, pois pediu ao papa autorização para fundar doze mosteiros para a Ordem, um deles numas ilhotas insalubres a que chamam Berlengas e onde os Jerónimos irão viver, pela certa, no meio de guano e gaivotas loucas. A coisa, claro, é muito discutida, a começar pela grande renovação do Convento de Cristo, que anda a desviar mão-de-obra e fundos do que se destinava ao tal grande Mosteiro de Santa Maria. O papa foi logo de concordar com a obra inteira deste grande mosteiro, pois tudo o que favoreça o aumento do culto divino, a salvação das almas e o florescimento da religião é sempre bem-vindo nestes tempos em que a fé vai escasseando. Mas o papa não foi de modas. Obrigou contrapartidas. Que se rezasse uma missa quotidiana por alma do Infante descobridor; que se atendesse de confissão os marinheiros e peregrinos em todos os casos não reservados à Santa Sé; que se lhes ministrasse a eucaristia, sem prejuízo, contudo, das igrejas paroquiais circunvizinhas... Lá se assinou bula, concedendo todos os privilégios, indultos, imunidades, liberdades, graças e concessões outorgadas ou a outorgar, coisas que são assim de grande comodidade». In Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000, ISBN 972-42-2392-2.

Cortesia de CLeitores/JDACT