sábado, 14 de fevereiro de 2015

O Último Conjurado. Isabel Ricardo. «Com o passar dos anos, a reacção contra o domínio espanhol foi-se tornando cada vez maior, como uma bola de neve, até se tornar numa perigosa avalanche»

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«Maldito seja o cardeal que não apontou sucessor, deixando, assim, Portugal envolto em lágrimas e dor»

«Corria o ano de 1639 da GNS Jesus Cristo. Há quase sessenta anos que Portugal vivia sob o domínio espanhol. Ia longe o desgraçado dia da invasão castelhana, em que a maior parte da nobreza do nosso reino quase oferecera de bandeja a pátria, em troca de meia dúzia de moedas de ouro. Morrera António, Prior do Crato, em Paris, exilado, desgostoso de tanto batalhar para sacudir o jugo estrangeiro do seu querido país, sem, no entanto, o conseguir. O povo, esse, jamais esquecera o seu amado Prior do Crato, rei por apenas dois meses e a última esperança para a tão preciosa independência. Cioso desta, sempre detestou a agregação do nosso reino ao de Castela, alimentando o rancor pelos nobres, por estes nunca terem feito nada para modificarem aquela situação. Com a subida ao trono de Filipe IV em 1621, e do seu odioso ministro, o conde-duque Olivares, o descontentamento tornou-se geral. Este poderoso ministro, que votava um ódio irracional a Portugal, adoptou uma política de dureza e tomou medidas que desagradaram profundamente aos portugueses. Choviam impostos em cima de impostos e o povo não os queria pagar, pois sabia estar a contribuir para despesas alheias. O conde-duque desejava, com tantos impostos e humilhações, pôr Portugal de rastos, para depois o poder subjugar pela força das armas, reduzindo-o a uma simples província de Espanha. O seu desejo era esse: transformar Espanha num só país, com leis únicas e, assim, tirar a autonomia a Portugal e à Catalunha. Indo contra os foros do reino jurados pelo primeiro Filipe, segundo de Espanha, entraram oficiais e tropas castelhanas no nosso país, com o pretexto de defenderem a costa contra os corsários ingleses, porque a Espanha estava envolvida na Guerra dos Trinta Anos, guerreando-se com França, Inglaterra e Holanda.
Outra das medidas impopulares do conde-duque foi o recrutamento forçado das nossas tropas para combaterem nessa guerra. Com o passar dos anos, a reacção contra o domínio espanhol foi-se tornando cada vez maior, como uma bola de neve, até se tornar numa perigosa avalanche. O povo começou a revoltar-se a partir de 1623. Os motins sucediam-se uns aos outros, devido a novos impostos e a outros problemas, e o mais perigoso foi o de Évora. Nessa altura, o povo não recebeu ajuda alguma do clero nem da nobreza, que apenas procuraram acalmar os ânimos, receosos das medidas que o governo de Madrid iria fazer cair sobre Évora, o que não tardou a acontecer... O povo revoltou-se contra eles, desta vez sem razão, pois a maioria do alto clero e da nobreza compartilhavam do mesmo sentimento: o desejo pela tão ambicionada independência. Na altura em que a nossa história se desenrola era vice-rainha de Portugal, Margarida, duquesa de Mântua e prima de Filipe IV e os portugueses nada tinham a apontar-lhe, pelo contrário, até gostavam dela, por ser amável e muito religiosa. Para secretário de Estado foi escolhido o odiado e detestado Miguel Vasconcelos, que conseguia inventar os impostos mais injustos imaginados, para angariar mais e mais dinheiro para Madrid. Servil adulador do conde-duque, Vasconcelos odiava e humilhava igualmente a nobreza, o clero e o povo, semeando ódios e rancores. A sua nomeação dera-se em 1635, pouco tempo depois da de Margarida, e houve grande irritação dos ânimos de toda a gente. Os impostos que até ali tinham sido pesadíssimos tornaram-se exorbitantes. O dia estava chuvoso, mas, de tempos a tempos, o Sol espreitava, um pouco tímido, como se estivesse a jogar às escondidas. Havia um grande alarido numa parte bem conhecida da bonita e airosa Lisboa. Soldados castelhanos extremamente irritados, não só com a chuva, mas principalmente pelo motivo por que se encontravam ali, mexiam-se de um lado para o outro, interrogando os habitantes e invadindo-lhes as casas, sem cerimónia alguma. Quiero ese enmascarado preso hoy! El fué visto por aquí y no estará muy lejos. El ministro me dio orden para matarlo, si resistir a la prisión, afirmou o capitão dos soldados, cujo bigode farfalhudo tremia de nervosismo cada vez que falava. Era alto e ruivo, de feitio irritadiço, e empurrava, impaciente, quem lhe surgia à frente. Um grupo de populares rodeava-os, indignados com a confusão e refilando com eles. Já lhes dissemos mil vezes que o capitão Gualdim não está aqui! O que é que ele fez desta vez?, perguntou uma mulher baixa e robusta, em ar de desafio. Um soldado português voltou-se para ela e disse a meia voz, com os cantos da boca tremendo, como se tivesse uma imensa vontade de rir: O capitão Gualdim ontem fez uma emboscada a Vasconcelos quando ele se ia deitar. Deixou-lhe espetada na almofada da cama uma mensagem com ameaças terríveis e o ministro está doido de raiva... Os olhos das pessoas brilharam de prazer e reconhecimento.
Um velho, todo vergado pelo peso dos quase noventa anos e cabelos brancos como a neve, levantou a mão trémula ao céu. A luz que tinha nos olhos denunciava bem a vida que no corpo lhe faltava. Um dia, o rei Sebastião há-de voltar no seu cavalo branco para arrancar o país desta escória que nos governa! Os outros concordaram com ele, mais por respeito do que por outra coisa. Bem sabiam o quanto era impossível o que o velho dizia. O monarca Sebastião, se ainda estivesse vivo, devia estar tão idoso quanto ele; mas o sentimento é que contava... Naquele tempo ainda havia uma grande parte da população que acreditava que o rei desaparecido em Alcácer Quibir, em 1578, voltaria numa manhã de nevoeiro, tão jovem quanto partira, para libertar Portugal dos espanhóis. Os jesuítas, sobretudo, faziam do sebastianismo uma arma perigosa, pois alimentavam, assim, as esperanças da população na restauração de Portugal. Desconfiava-se deles nos motins de Évora, na tão falada revolta do Manuelinho, pois eles eram inimigos mortais do domínio espanhol e havia razão nessas desconfianças. Os eclesiásticos tentavam excitar o povo contra os espanhóis, de todas as maneiras possíveis. Apesar da rivalidade existente entre Jesuítas e Dominicanos, ambas as ordens haviam achado por bem trabalharem em conjunto na restauração da pátria. Recorrendo a profecias e com o auxílio do sebastianismo, pressagiavam a queda do domínio espanhol e o regresso de um rei português, João, duque de Bragança, que os mais crédulos acreditavam ter sido encarnado pelo desditoso Sebastião». In Isabel Ricardo, O Último Conjurado, Saída de Emergência, 2014, ISBN 978-989-637-676-5.

Cortesia de SEmergência/JDACT