sábado, 28 de fevereiro de 2015

O Mistério da Pureza. Alexandre Borges. «Pedro V era, pois, o começar de novo, uma figura que inspirava no imaginário popular uma admiração natural, entre o primeiro Pedro de Portugal, pela história de amor…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Pedro V e dona Estefânia
«Não dissemos nada, demos as mãos, ele beijou-me na testa, eu chorei, ele tinha lágrimas nos olhos, ficámos a olhar-nos por muito tempo, sem nada dizer, mas compreendendo-nos» Poderia ser uma entrada no diário dum poeta. Ou o trecho dum romancista descrevendo um momento perfeito, mas ficcionado, em que duas criaturas, tão feitas uma para a outra que dispensavam as palavras, se conheciam, por fim. Contudo, não foram ditas por qualquer escritor de carreira. São razoavelmente contemporâneas desse género de literatura, mas pertenciam à vida real. Foi a rainha dona Estefânia quem as registou em carta, descrevendo à mãe o momento em que viu pela primeira vez o noivo, Pedro V num cais de Lisboa, a 17 de Maio de 1858. Ela tinha acabado de chegar; ele era como se tivesse.
Cada um de 21 anos incompletos. Tinham casado por procuração no dia 29 do mês anterior, na Igreja de Santa Edwiges, em Dresden. Ela, a princesa de Hohenzollern-Sigmaringen; ele, rei de Portugal, representado na ocasião pelo cunhado, o príncipe Leopoldo, irmão da noiva, um procedimento estranho ao entendimento ocidental no século XXI, mas um ritual frequente ainda naqueles meados de Oitocentos. Agora, ali, diante um do outro selavam o pacto em silêncio. No dia seguinte, casavam de novo, para o país ver, em cerimónia oficial. Casariam as vezes que fossem precisas, porque o termo poucas vezes fizera tanto sentido. Pedro e dona Estefânia tinham acabado de chegar a casa.
Talvez se recorde dele das notas de 1000 escudos, 1000$00. Foi, durante alguns anos, a nota de maior valor facial em Portugal. Ao centro, um homem de cabelo e bigode finos, impecavelmente aparados, rosto angular, olhar claro, fixo num ponto distante, ombros direitos, pose esfíngica, uma figura cristalizada na juventude eterna de príncipe perfeito. Era Pedro V um dos últimos reis de Portugal. E um dos mais amados. Cresceu rodeado de uma aura de esperança. Era o rei que haveria de reconciliar um país dilacerado pelos traumas da guerra civil que, anos antes, opusera o avô, Pedro IV ao tio-avô, Miguel, e, portanto, duas visões opostas do mundo: liberalismo e absolutismo. A sua mãe, dona Maria II, já sarara boa parte das feridas, mas continuava a ser a rainha que resultara duma guerra, para desonra dos vencidos. Pedro V era, pois, o começar de novo, uma figura que inspirava no imaginário popular uma admiração natural, entre o primeiro Pedro de Portugal, pela história de amor, e o desaparecido rei Sebastião.
Todas as histórias que se contavam acerca do jovem alimentavam esse sentimento. Dele se diz que, com apenas ano e meio, já se fazia entender em português, francês e alemão. Tocava bem piano, era hábil na esgrima e no tiro e os críticos apreciavam a firmeza do seu traço no desenho. Crescia numa educação humanista e cheia de princípios, ou não ficasse a sua mãe, para a História, como a Educadora. Realizava trabalho social junto da comunidade. Gostava de escrever e preparar discursos. No futuro, haveria de colaborar na Revista Contemporânea sob pseudónimo, como um vulgar opinador sobre matérias internacionais. Não era, com efeito, um jovem comum. Queixava-se da futilidade das raparigas que se acercavam da família real quando ia passar férias a Sintra. Procurou, desde cedo, a companhia de Alexandre Herculano e isso dizia quase tudo sobre o seu carácter e a forma como preparava as responsabilidades que o aguardavam como filho mais velho da rainha. Herculano era, por esta altura, a autoridade moral do reino. Mas não só. Era a autoridade moral que se desapontara, profunda e irredutivelmente, com esse mesmo reino. Tinha sido um homem invulgar, um soldado-escritor. De armas na mão e no campo de batalha, lutou ao lado de Pedro IV na guerra, realizando na prática os ideais que defendia por escrito. Vencido o combate, recebeu os naturais convites para ocupar lugares políticos no regime que ajudara a implantar. E Herculano chegou a ocupá-los, mas depressa se desiludiu. Preferiu trocar o Parlamento pelas bibliotecas, o presente efectivo pela redacção da primeira grande História de Portugal e pelos romances históricos. Depois, quando desistisse definitivamente dum país que, feitas as contas, continuava a querer títulos de conde e barão, onde não sentia pulsar a força da regeneração, mas a soturna decadência de vícios antigos, retirar-se-ia para o campo». In Alexandre Borges, Histórias Secretas de Reis Portugueses, Casa das Estrelas, 2012, ISBN 978-972-46-2131-9.

Cortesia de CdasLetras/JDACT