sábado, 7 de fevereiro de 2015

O Miolo do Leão. Assunto Encerrado. Italo Calvino. «O homem hermético, o homem que não se deixa subjugar por outras razões a não ser pelas de seus mínimos sobressaltos previsíveis até a medula, que descobre a sua verdade sempre à margem do que entulha o cenário»

Cortesia de wikipedia

O miolo do leão
«Conferência lida em Florença no dia 17 de Fevereiro de 1955, para a secção florentina do Pen Club, a convite de Anna Banti; foi repetida a seguir em diversas cidades italianas. Publicada na revista Paragone, nº 66, Junho de 1955»

«Fala-se com certa frequência de um problema do personagem na nossa literatura de hoje: personagem positivo ou negativo, novo ou velho. É uma discussão que, se para  alguns pode parecer ociosa, sempre será cara, ao contrário, aos que não separam os seus interesses literários de toda a complexa rede de relações que liga entre si os diversos interesses humanos. Porque, entre as possibilidades que se abrem para a literatura agir na história, esta é a mais sua, talvez a única a não ser ilusória: compreender para que tipo de homem ela, história, com seu labor múltiplo, contraditório, está preparando o campo de batalha, e ditar-lhe a sensibilidade, o impulso moral, o peso da palavra, a maneira como ele, homem, deverá olhar à sua volta no mundo; aquelas coisas, enfim, que somente a poesia, e não, por exemplo, a filosofia ou a política, pode ensinar. Claro que esse tipo de homem que uma obra ou toda uma época literária pressupõe, subentende, ou melhor, propõe, inventa, pode até não ser um daqueles personagens íntegros que são prerrogativa do romance ou do teatro, mas vivos também, ou talvez sobretudo; aquela presença moral, aquele protagonista não menos identificado que figura nas poesias líricas ou nas prosas dos moralistas, aquele verdadeiro protagonista que também em tantos romancistas, começando por Manzoni ou pelo Verga maior, não se identifica com nenhum dos personagens. Portanto, antes de nos perguntarmos se haveria personagens característicos da literatura italiana de hoje, e quais seriam eles, temos de começar a nos perguntar se haveria, e qual seria, um protagonista verdadeiro, um tipo de homem que ela, mesmo que implicitamente, pressuponha ou proponha.
A dificuldade para dar uma resposta a essa pergunta é a mesma que deparamos toda a vez que colocamos, para a literatura italiana de hoje, uma questão geral, um julgamento sobre a sua situação, uma previsão quanto à linha de seu desenvolvimento. Esse período literário a que muitos apõem a marca imprecisa do neorrealismo e que, seja lá como for, caracteriza-se por uma retomada de interesses num sentido realista e por um predomínio, em termos de quantidade e ressonância, da narrativa sobre os outros meios de expressão, parece recusar-se a deixar-se simbolizar e resumir numa fisionomia moral típica, num carácter humano específico. E não é verdade que a tendência a expressar-se em caracterizações precisas de homens e mulheres tenha sido sobretudo do Oitocentos romântico, com a aura do herói ou os altos e baixos do filho do século, na Itália, após os últimos rebentos da estirpe romântica, como o homem dannunziano ou o homem crepuscular, a história literária recusa-se a deixar-se ler nesse sentido. Porque justamente a literatura do passado recentíssimo, a hermética, como poucas antes tão desprovida de pessoas, uma literatura de paisagens, de objectos, de estados de ânimo sombrios, uma literatura da ausência, como foi dito, até mesmo ela propunha uma imagem de homem bem caracterizada (ainda que caracterizada negativamente, para nos remetermos a um verso famoso) e ligada (embora negativamente) aos tempos. O homem hermético, o homem que não se deixa subjugar por outras razões a não ser pelas de seus mínimos sobressaltos previsíveis até a medula, que descobre a sua verdade sempre à margem do que entulha o cenário, esse homem sovina de sentimentos e sensações, mas sem outra concretude além deles, esse homem sem pontos por onde possa ser pego, protegido por uma carapaça áspera e siliciosa ou escorregadia como uma enguia, esse homem que parecia construído propositadamente para atravessar tempos infaustos e realidades não compartilhadas com um mínimo de contaminação e a um só tempo com um mínimo de risco, foi precisamente um caso típico de proposta da literatura para resolver os problemas das relações do homem com o seu tempo, numa oposição à história que o juízo de hoje nos revela ser mais complexa do que parecia, ambivalente.
Temos de dizer que o homem hermético é o último personagem verdadeiro que a literatura italiana soube expressar? Claro que não penaremos para descobrir sua presença no centro das experiências dos mestres da nova narrativa, precisamente nas obras por meio das quais se deu uma saída do clima hermético rumo às novas poéticas realistas. O abstrato furor do Silvestro de Conversa na Sicília [Conversazione in Sicilia] é o do homem que sente a tragédia da história mas só pode se mover à margem dela, participar dela apenas liricamente; e decerto não mais integrado na realidade histórica é o Ene Dois de Os homens e os outros, por mais que maneje bombas e frequente reuniões. E Pavese, que em polémica anti-hermética escreve poemas com operários e barqueiros e bebedores, nunca nos deixa esquecer que o protagonista não é o operário ou o barqueiro ou o bebedor, mas o homem que os está observando de viés, da mesa oposta da taberna, e que gostaria de ser como eles mas não sabe. É o confinado Stefano, é o professor Corrado de Antes que o galo cante [Prima che il gallo canti], o homem que sabe que tem de ficar à margem lendo a história que os outros vivem, com os olhos meta-históricos do poeta intelectual. E assim, naquele que definiremos como o filão florentino ou toscano de nossa nova narrativa, nem é tanto a minuciosa anotação realística que conta de facto, mas o amparo de memória ou nostalgia por meio do qual ela é filtrada, a subtil amargura da precariedade de uma posse ou de uma relação: é sempre o homem hermético, um tantinho mais cordial, com inquietudes mais discretas que aquelas de Vittorini e Pavese, a dominar a cena. Ainda não falamos do escritor que antes de todos eles começou a escrever romances e que mais que qualquer outro apostou explicitamente numa representação típica dos homens de seu tempo: isto é, Moravia. Mas, mesmo nele, como não aproximar a não participação moral de seus protagonistas, sua careta de habitual e tedioso desgosto, aceito como um dado que não pode ser facilmente eliminado, como não aproximá-la do tema que é próprio de toda a sua geração literária: o tema justamente da não adesão, da relação negativa com o mundo? A narrativa italiana contemporânea nasceu, portanto, sob o signo de uma integração malograda: de um lado, o protagonista lírico-intelectual-autobiográfico; do outro, a realidade social popular ou burguesa, metropolitana ou agrícola-ancestral. As tentativas de Bildungsroman político, as histórias dos noviciados conspirativos ou partigiani de um protagonista lírico-intelectual em contacto com o proletariado, que se aglomeraram nos primeiros anos após a Libertação, pareceram o caminho mais natural para testemunhar a Resistência, mas não conseguiram representar com acentos de verdade nem o tormento interior dos protagonistas nem aquele épico e colectivo do povo». In Italo Calvino, Assunto Encerrado, Una Pietra Sopra, tradução de Roberta Barni, Companhia das Letras, 2009, ISBN 978-853-591-458-0.

Cortesia da Cletras/JDACT