domingo, 1 de fevereiro de 2015

O Amor e o Ocidente. Denis Rougemont. «Afirmar que o amor-paixão significa, de facto, o adultério é insistir na realidade que o nosso culto disfarça e ao mesmo tempo transfigura; é revelar o que esse culto dissimula, recalca e recusa nomear para nos permitir um abandono ardente»

jdact e wikipedia

O Mito de Tristão. Triunfo do romance... E o que ele esconde
«Senhores, agrada-vos ouvir uma bela história de amor e de morte?... Nada no mundo poderia nos agradar mais. A tal ponto que este início do Tristão de Bédier parece ser o tipo ideal de primeira frase de um romance. Eis o traço característico de uma arte infalível que nos lança, desde o início da história, no estado apaixonado de expectativa em que nasce a ilusão romanesca. De onde vem esse encanto? E que cumplicidades esse artifício de retórica profunda sabe despertar em nossos corações? Que a combinação entre amor e morte seja aquilo que nos toca mais profundamente é um facto que estabelece à primeira vista o prodigioso sucesso do romance. Há outras razões, mais secretas, para vermos nisso como que uma definição da consciência ocidental... Amor e morte, amor mortal: se isso não é toda a poesia, é, ao menos, tudo o que há de popular, tudo o que há de universalmente emotivo em nossas literaturas; em nossas mais antigas lendas e em nossas mais belas canções. O amor feliz não tem história. Só existem romances do amor mortal, ou seja, do amor ameaçado e condenado pela própria vida. O que o lirismo ocidental exalta não é o prazer dos sentidos nem a paz fecunda do par amoroso. É menos o amor realizado que a paixão de amor. E paixão significa sofrimento. Eis o facto fundamental. Entretanto, o entusiasmo que mostramos pelo romance e pelo filme nascido do romance, o erotismo idealizado, difundido em toda a nossa cultura, na nossa educação, nas imagens que compõem o cenário das nossas vidas, enfim, a necessidade de fuga, agravada pelo tédio mecânico, tudo em nós e ao nosso redor glorifica a tal ponto a paixão que chegamos a considerá-la uma promessa de vida mais viva, uma força que transfigura, algo situado além da felicidade e do sofrimento, uma beatitude ardente.
Na paixão, já não sentimos o que sofre, mas o que é apaixonante. E, no entanto, a paixão de amor significa, de facto, uma infelicidade. A sociedade em que vivemos, e cujos costumes nesse aspecto quase não mudaram ao longo dos séculos, compele o amor-paixão, em nove entre dez casos, a assumir a forma do adultério. Sei que os amantes lembrarão todos os casos de excepção, mas a estatística é cruel: ela nega a nossa poesia. Acaso vivemos numa tal ilusão, numa tal mistificação, que teríamos realmente esquecido essa infelicidade? Ou devemos acreditar que preferimos no íntimo o que nos fere e nos exalta ao que aparentemente satisfaria o nosso ideal de vida harmoniosa? Examinemos mais de perto esta contradição, com um esforço que deve parecer penoso, pois tende a destruir uma ilusão. Afirmar que o amor-paixão significa, de facto, o adultério é insistir na realidade que o nosso culto disfarça e ao mesmo tempo transfigura; é revelar o que esse culto dissimula, recalca e recusa nomear para nos permitir um abandono ardente àquilo que não ousaríamos reivindicar. A própria resistência que o leitor oporá ao reconhecimento de que paixão e adultério quase sempre se confundem na nossa sociedade não será a primeira prova deste facto paradoxal: que desejamos a paixão e a infelicidade sob condição de jamais confessarmos que as desejamos como tais?
A julgar por nossas literaturas, o adultério parece uma das ocupações mais importantes a que se dedicam os ocidentais. Poderíamos rapidamente compor a lista dos romances que não lhe fazem qualquer alusão; por outro lado, o sucesso obtido pelos demais, a satisfação que despertam, a própria paixão com que alguns procuram condená-los, tudo isso é bastante indicativo dos sonhos com que sonham os casais, submetidos a um regime que fez do casamento um dever e uma conveniência. Sem o adultério, que seria de todas as nossas literaturas? Elas vivem em função da crise do casamento. É provável também que elas alimentem essa crise, quer cantando em prosa e verso o que a religião considera um crime e a lei uma contravenção, quer, ao contrário gracejando e tirando daí um repertório inesgotável de situações cómicas ou cínicas. Direito divino da paixão, psicologia mundana, sucesso do triângulo amoroso no teatro, seja através da idealização, da subtileza ou da ironia, o que se faz senão trair o tormento inominável e obsessivo do amor contrário à lei? O que se busca não é uma fuga da sua terrível realidade? Converter a situação em mistério ou em farsa é sempre admitir que ela é insuportável... Malcasados, frustrados, revoltados, apaixonados ou cínicos, infiéis ou traídos, na realidade ou em sonho, no remorso ou no temor, no prazer da revolta ou na ansiedade da tentação, seja como for, há poucos homens que não se enquadrariam em pelo menos um desses casos: renúncias, compromissos, rupturas, neurastenias, confusões irritantes e mesquinhas de sonhos, de obrigações, de complacências secretas, metade da infelicidade humana se resume na palavra adultério. Apesar de todas as nossas literaturas, ou talvez justamente por sua causa, pode parecer às vezes que nada ainda se tenha dito sobre a realidade dessa desventura. E que, nesse domínio, algumas das questões mais singelas tenham sido mais frequentemente solucionadas que formuladas». In Denis Rougemont, O Amor e o Ocidente, 1956, 1972, tradução de Paulo Brandi e Ethel Cachapuz, Editora Guanabara, 1988, Wikipédia.

Cortesia de Guanabara/JDACT